2010-12-22

UM CONTO DE VEZ EM QUANDO


 


 

"NELO PRETO"


 


 

Hoje, vou falar-vos do Porto. Não do Porto do otorrinolaringologista, mas do Porto do médico dos oubidos; não do Porto do ácido acetilsalissílico, mas do Porto da aspirina; não do Porto do ácido desoxirribolucleico, mas do Porto do que merda é essa, carago?

Em tempos que já lá vão, mas não vão assim há tanto tempo como isso, era a Areosa o reino e refúgio de tudo quanto era lanceiro e contista sem desprimor, naturalmente, para a muita gente séria que vivia na zona. E continua a viver, graças ao Senhor. Se não aquela a que me refiro, que já deve ter ido fazer tijolo na quinta das tabuletas, que o tempo não perdoa, pelo menos outra, porque apesar da morte, a vida não pára. Nesse tempo, quando o viaduto da Areosa ainda era um sonho, o espectáculo diário era dado pelo cabeça de giz que, junto ao posto da então Polícia de Viação e Trânsito, no preciso local para onde convergiam, e donde divergiam, de acordo com os respectivos sentidos de trânsito, as ruas de Costa Cabral, rua D. Afonso Henriques, e as estradas Interior e Exterior da Circunvalação, orientava o trânsito. E era vê-lo a passar da "Interior" para a "Exterior", e manda parar, e manda seguir, e manda virar, e apita, e esbraceja qual vira-vento, e vira as costas e rodopia, até que, já cansado, se encosta ao posto da PVT a fazer um intervalo enquanto esganava um paivante. Que se quilhe o trânsito!

Hoje, tudo está mudado, na Areosa. O sinaleiro alquinou, para ser substituído, depois de centenas de acidentes, como é uso em Portugal, por desengraçados semáforos. Orgulhosamente, a Areosa exibe o seu viaduto mas deixou que emigrassem os carteiristas e fauna circundante, num empobrecimento inqualificável do nosso riquíssimo e vastíssimo folclore. Mas algo ficou desse passado deslumbrante: o riquíssimo vocabulário marginal, que acabou por sair do núcleo fechado dos carteiristas e burlões, para extravasar para outros tipos de comportamento desviante, por exemplo os cardenholas, onde se misturou graciosamente com outros falares portogueses.

Foi, pois, numa Areosa mais recente, que fomos encontrar "Nelo Preto" e sua honorabilíssima agá, D. Clementina, a "Tina".

Cabe, aqui, abrir um espaço, não muito grande, mas o suficiente para justificar a forma pretérita como esta descrição é feita: "Nelo Preto" vive, hoje, honestamente do Rendimento Social de Inserção que, à data a que os factos se reportam, dava pelo nome de Rendimento Mínimo Garantido, que obteve com o suor do rosto, como devem calcular. Mas nem sempre viveu assim.

"Nelo Preto" era um respeitável, conspícuo e conceituado cardenhola. Aliás, "Nelo Preto" não gostava que lhe chamassem cardenhola; de cada vez que ia de cana declinava, como profissão, Técnico de Redistribuição de Rendimentos, que sempre é coisa mais fina. Do mesmo modo, D. Clementina auto-intitulava-se Supervisora Geral de Bem-estar, Higiene e Saúde, nome pomposo para Empregada de Limpeza, profissão que exercia em concomitância com a de Cobradora de Rendimento Mínimo Garantido. Ora, para não engrupir o leitor, o diligente autor destas humildes linhas correu Ceca e Meca para tentar obter resposta para a pergunta que se adivinha, e que é "Nelo Preto", porquê? Claro que nesta altura da leitura, já o leitor terá chegado à conclusão, ora, se se chamava "Nelo Preto" é porque era escarumba, o que até uma conclusão lógica, intuitiva, evidente e racional mas, caro leitor, deixe-me dizer-lhe, bai no Batalha, que o "Nelo Preto" era branco. Caucasiano, para ser mais específico. Como se não bastasse, era branco e tinha cabelo loiro, sim senhores, loiro natural e tudo, que o homem não gramava águas oxigenadas, e mesmo as outras mais não serviam do que para tomar banho, o que acontecia quando Deus queria, sendo certo que Deus raramente estava para aí virado, aliás tinha, e continua a ter, acho eu, mais que pôr ao sol, basta dar uma vista de olhos aos jornais para concluir, sem a menor dificuldade, que ser Deus não é para qualquer um, não é tarefa fácil, é preciso tê-los no sitio. Pois bem, o nosso Manuel, donde derivou o diminutivo "Nelo", pronto, esta parte já está esclarecida, não obstante a brancura da pele tinha o cabelo encarapinhado como se de um preto a sério se tratasse, embora fosse branquinho da Silva como os brancos. Ora, aconteceu que a certa altura das investigações perdi-me, há que confessá-lo, pelo que não me foi, humanamente, possível abichar a razão pela qual um branco tinha o cabelo loiro, o que, só por si, nem espanta por aí além, mas loiro e encarapinhado, e isso sim, já é de aparvalhar qualquer um. Resta-me, pois, apresentar uma teoria, muito minha e da qual já efectuei o competente registo, não vá alguém abarbatar-se, pois bem, algures na árvore genealógica de "Nelo Preto", e teria que ser, garantidamente, a montante, houve uma pinocada, pelo menos uma, com alguém de etnia africana, não há outra explicação para a encarapinhada grenha, não dá para saber se foi gajo ou gaja, nem isso interessa para o caso, sendo certo que um nórdico ou nórdica também não estará inocente no meio disto, e a deriva genética encarregou-se de fazer o resto, toda a gente sabe que a genética, tal como as maldições divinas, se perpetua por uma data de gerações. Certo, certo, é que "Nelo Preto" todos os dias suava como um cavalo para conseguir desencarapinhar ou, pelo menos, dar um aspecto decente ou, vá lá, arrumado, a todo aquele loiro emaranhado piloso.

"Nelo Preto" era o babado, putativo e alegre pai de quatro encantadores chavalos, Pormenor, se não importante, pelo menos curioso, é que Nelinho, o mais velho, era o único loiro, de faróis azuis como a velhota, contrastando flagrantemente com os seus três manos, todos eles morenos e de galizos bem castanhos. Claro que esta singular circunstância dava direito a olhares de esguelha do mulherio vizinho, tanto mais que eram longas e frequentes as estadas de "Nelo Preto" na cana, embora são seja de desprezar o facto, e isto não é grupo, de o hóspede do Estado ser beneficiário de inúmeras saídas precárias, as quais eram concedidas face ao bom comportamento do nosso "Nelo", bastando, para ser avaliado esse bom comportamento, que "Nelo Preto" estivesse mais de quinze dias sem cometer qualquer assalto. Claro que durante as precárias a conversa era outra, que a famelga a sustentar era grande e o cacau que D. Clementina esmifrava tinha de ser esticado de maneira a que não sobrassem muitos dias no fim do ordenado. O Rendimento Mínimo sempre era uma ajuda, mas, mesmo assim, insuficiente, basta fazer as contas a cinco mata-bichos no café do senhor Fonseca, seis, se o "Nelo Preto" estava fora da cana, ou seja, estava com a bola, tomados diariamente, a que se devem acrescentar os também diários lanches, que a ganapada era de muito sustento e não se contentava com micharias, o que nos leva, inevitavelmente, para as subtilezas da língua portuguesa, que isto das conversas é como as cerejas, a gente puxa uma e vem uma catrefada delas dependuradas. Toda a gente sabe que a língua portuguesa é dinâmica, a portoguesa nem falar, isto é, há vocábulos e/ou expressões que acabam por cair em desuso, enquanto outros vocábulos e/ou expressões vão aparecendo. Há tótil anos, bastantes, demasiados para o meu gosto, o mulherio alcoviteiro costumava mandar umas bocas do tipo, e isto é um exemplo completamente ao calhas, ó comadre, já biu que o sr. Antunes "num" bole, a mulher também "nãoe", mas bão tomar o mata-bicho todos os dias ao café, bão lanchar todas as tardes, enchem a blusa como desalmados de que é que biberá o homem? e a resposta lógica, tendo em conta a época, era, mais ou menos, atão num sabe, Dona Adozinda? O sr. Antunes bibe dos rendimentos ora, hoje em dia tal expressão não tem o menor significado, pelo menos dentro do contexto, quem vai tomar o mata-bicho todos os dias ao café, e lanchar, também diariamente, não vive dos rendimentos, que a vida está má para todos, mas vive, com certeza absoluta, do Rendimento, estão a ver como o desaparecimento de um simples "S" alterou tudo, digam lá que a língua portuguesa é chata, mas voltemos ao que interessa, que é a forma como "Nelo Preto" se ocupava a compor o Rendimento.

Pois bem, durante as precárias, "Nelo Preto" lá tinha de bulir, de vergar a mola, como diz o outro. Fazia pela vida e dava que fazer, que o mânfio podia ser cardenhola mas não era egoísta. Dava que fazer à polícia e aos otários, naturalmente, que nunca mais voltavam a pôr a vista em cima de tudo o que "Nelo Preto" pudesse abarbatar, mas passavam o resto da vida a ser dichavados na bófia ou na justina, às vezes até a piconera metia o bedelho, e a fazer diligências de reconhecimento de objectos e suspeitos, diligências que, invariavelmente, iam pró penico. "Nelo Preto" gramava mais achantrar-se a narta, e a ourina, que era mais fácil de passar, aos intrujas, embora não desprezasse computadores, portáteis ou de secretária, telemóveis e televisores de plasma, que os outros são muito volumosos e difíceis de transportar e, além disso, já estão a ter pouca saída, porque quem compra um aparelho de televisão, mesmo que seja chordado, quer sempre a última palavra em tecnologia, se uma pessoa investe, e o termo investe não tem, aqui, qualquer conotação taurina, bovina que seja, dizia que quando se investe, mesmo que na candonga, investe-se em coisa boa. Houve, um dia, uma cena macaca, que não resisto à tentação de contar, "Nelo Preto" tinha assaltado um cardenho, mais concretamente uma vivenda, trabalho limpo, os donos, completamente distraídos ou desprevenidos tinham deixado as portas fechadas só com os respectivos trincos, entrar ali foi mais fácil do que meter uma dose para a veia, mas as coisas nem sempre são o que parecem, quando "Nelo Preto" entrou no cardenho
sentiu-se na merda, a casa estava vazia, os donos tinham-se mudado e haviam levado tudo com eles, não pôde evitar uma imprecação, filhos da puta, não se pode confiar em ninguém, apesar de tudo ainda deu uma volta pela casa, não fossem os anteriores ocupantes ter-se esquecido de alguma coisa, ó carago, um par de calcantes
novos em folha, olha, não perdi tudo ao menos dá para meias-solas, conforto efémero e inadequado, inadequado porque os chiantes estavam novos, como disse, e não precisavam de meias-solas para nada, efémero porque "Nelo Preto" calçava 41 e os sapatos eram 44, grande pata tinha o gajo, devia ser cá um calmeirão… Olha, que se lixe, pode ser que o recepta me dê qualquer coisa por eles, sempre são novos a estrear, mas o recepta não estava para aí virado, tu estás mas é ganzado, "Nelo", quem é que quer calcantes em segunda-mão? nem por vislumbre se apercebeu do anedótico disparate, sapatos em segunda-mão não existem, quando muito em segundo-pé, ninguém anda com os sapatos nas mãos, não tardará muito, é certo, a julgar pelo número, cada vez maior, de pessoas que usam gafas na cabeça e brincos na penca, que a moda já não é o que era, como dizia Confúcio, o tempora o mores, se não foi Confúcio foi alguém por ele, mas podia, perfeitamente, ter sido Confúcio, se o homem soubesse falar latim, o que não está suficientemente demonstrado.

Bute! Quando não estava a trabalhar nem dentro, "Nelo Preto" era frequentador da "Tasca do Ti Belmiro". Pois foi precisamente na "Tasca do Ti Belmiro" que "Nelo Preto" começou a ter espírito santo de orelha e se foi apercebendo de bocas foleiras, cochichadas primeiro, a meia voz depois, audíveis finalmente. Aliás, para sermos mais concretos, foi o "Adriano Manco" quem puxou a conversa. "Nelo Preto" estava num intervalo, ou seja, tinha acabado o cumprimento de uma pena e aguardava o juro que, fatalmente, o iria levar para outra. Naquele momento, encontrava-se alapado a uma mesa, com um néguinhos de tintol à sua frente, que ia beberricando a espaços. Adriano Manco chegou-se e alapou-se também:

-- Ó Nelo, eu não tenho nada a ber
co a tua bida, como dizem os franceses, "chacun sabe de si", mas não gramo nada oubir a maralha a falar mal nas tuas costas. E o que se diz é chunga pra carago.

-- Desembucha, pá! Não dizem que sou chibo, pois não? É que se algum filho da…

-- Descansa, que não é nada disso – interrompeu Adriano, e o autor destas linhas agradece a interrupção, já que aquele filho da… iria redundar em palavrão, e esse tipo de linguagem não tem, aqui, qualquer espécie de cabimento. Estamos no âmbito da literatura séria, e não da escrita obscena. "Adriano Manco" prosseguiu:

-- Andam aí uns mânfios a mandar umas bocas… Sabes como é, a gangada anda à sombra da bananeira e a laurear a pebide, e tem que se distrair com qualquer coisa…

-- Pôarra, pá! Desembucha de uma bez.

"Adriano Manco" decidiu-se:

-- É por causa dos teus putos, pá.

"Nelo Preto" apagou a pirisca no cinzeiro:

-- …dos meus putos? O que foi que os ganapos fizeram desta bez, que lhes arrebento as trombas?

-- Não fizeram nada, pá. Pelo menos, que eu saiba. Mas tu manja uma coisa: tu tens quatro ganapos, não é verdade?

-- Tenho. E ó depois?

-- Desses quatro ganapos, três são morenos, mas um é louro. Ora, há qualquer coisa que não bate certo, estás a gonar o filme?

"Nelo Preto" suspendeu o copo de négos que ia levar à boca, o bastelo a tremer como o caraças:

-- É boa, pá! Nunca tinha pensado nessa merda. Três ganapos morenos e um louro… Ainda bem que me falaste no assunto, que a chantra da Clementina bai ter que pôr a boca no trombone, se não quiser começar logo a afiambrar.

"Adriano Manco" ainda tentou deter o amigo:

-- Ó pá, tem calma, num ligues a bocas foleiras. Num
bás arranjar estrilho com a tua agá. Eu disse-te isto porque sou teu amigo, num foi para arranjar nenhum caldinho.

-- Num é caldinho nenhum. A gaja é que tem de dar à tramela, e bem dada, se num quiser levar um arraial de facho.

Emborcou, de um trago, o resto do vinho, escorropichando o copo. Arrotou ruidosamente e alquinou. Directo a casa.

Fazia uma brasa do carago, e "Nelo Preto" ia tão furioso que nem olhou antes de atravessar a rua. As grevas tremiam-lhe de fúria, e pouco lhe faltou para ser atropelado por um arranco cujo condutor teve de travar a fundo. Embebido nos seus negros pensamentos, "Nelo Preto" nem se apercebeu do gaiolo nem ouviu o condutor:

-- Oube lá, ó murcoum, pareces um pasma! Baza daí, dá de frosques, carago, põe-te na alheta, antes que te passe a ferro.

O presumível cornudo prosseguiu o seu caminho, ruminando palavrões. Sentia-se a jogar no Ramaldense, e impõe-se, já agora, explicar muito bem explicadinho o que significa a expressão jogar no Ramaldense, já que a dilucidação não cabe numa chã nota de rodapé.

Noutros tempos, a freguesia de Ramalde – como muitas outras freguesias – era um arrabalde do Porto, uma zona rural. Nessa zona havia uma raça de bois com cornos bastante compridos a apontados para o exterior. Dizia-se, então, e ainda se vai dizendo, que um fabiano enganado pela agá, tinha-os de Ramalde, ou jogava no Ramaldense. Quem se lembra da canção "Os Provincianos", considerada uma das "Melodias de Sempre", há recordar-se da estrofe "Por isso como em Paranhos/ há paus tamanhos/ que é de espantar/ Na baixa ou no arrabalde/ são de Ramalde/ os paus no ar".

Terminada esta humilde demonstração de profunda erudição, vamos prosseguir com a história.

"Nelo Preto" seguiu rua fora, magicando na melhor maneira de entrar com a patroa. Ou entrava de soleno, tentando tirar nabos da púcara, ou entrava de chancas, apanhando a agá desprevenida. Depois vê-se, decidiu.

D. Clementina, se não era uma zobaida também não se podia considerar um pau de virar tripas. Pelo contrário. Amandava umas gâmbias bem lançadas terminando, na parte superior, numa regueifa bem torneada. As prateleiras apresentavam-se firmes como rochas, e isto não obstante o ter dado de mamar a quatro gandulos. Como se não bastasse, os dois mais novos eram gémeos. O cabelo claro estava puxado em rabo-de-cavalo, mas deixava cair umas repas por sobre os lindos galizos azuis. Ou seja, era um traço. Mas tinha um feitio um bocado complicado, principalmente nos dias em que estava com o chico, isto é, quando o Benfica estava a jogar em casa. Nessas alturas fervia em pouca água, e quem a irritasse estava feito ao bife, que D. Clementina tinha um palanfrório capaz de fazer corar uma peixeira. Mas, neste caso, nem era o caso, e refiro-me ao jogo do Benfica.

D. Clementina passava a ferro umas galdinas de "Nelo Preto" quando este entrou. Entrou e não lhe deu o chocho do costume, o que fez D. Clementina pôr-se a fangues.

-- Olha lá, ó "Tina": tu num andas a mijar fora do penico nem nada?

D. Clementina sentiu-se como se lhe fosse a dar uma sulipampa, assim como uma espécie de badagaio, mas aguentou-se à bronca. No fim de contas ela tinha, a seu favor, a firme convicção de que a cabeça que está em cima dos ombros não é a que os homens usam para pensar, e decidiu passar ao ataque, que sempre é a melhor defesa: amandou os bastelos à cinta e perguntou:

-- Oube lá, num gosto de arcas encouradas, óbiste? Diz lá o que tens a dizer directamente na minha fronha, antes qu'a mostarda me chegue ó nariz.

"Nelo Preto" axandrou-se um pouco. D. Clementina parecia que não partia um prato, mas quando estava com os azeites era o desterro da louça.

-- Ó Tininha, aguenta lá os cabalos… Eu é que num gosto qu'andem a amandar bocas foleiras…

-- Pra já: quem amandou bocas foleiras, e que bocas foram essas?

-- Ó Tininha, deixa lá… Se calhar num bale a pena..

A boz, perdão, a voz de D. Clementina subiu uns decibéis:

-- Num bale a pena, o carago! Bais desembuchar e é já.

-- Olha, que se quilhe… Foi o Adriano… parece que o maralhal anda a querer dizer que o Nelinho num é meu filho… porque ele é loirinho e os outros são morenos…

Mas D. Clementina nem o deixou terminar:

-- Mas tu queres cunsumir-me a ialma? – e eu interrompo D. Clementina para lhe prestar a minha humilde mas sincera homenagem, porque a virtuosa senhora demonstrou, inequivocamente, o seu tripeirismo. Tripeiro/a que se preze nunca diz a
alma, a
água, a árvore; tripeiro que se orgulhe de o ser diz, claramente, a ialma, a iágua, a iárvore. Finda a homenagem, curta mas valiosa, retomemos o diálogo:

-- Mas tu queres cunsumir-me a ialma? Esse grunho
debia mas é olhar prá
garina dele. Quando o porco limposo
estaba
dentro, essa choca de merda chegou a fazer uma geraldina com dois guardas e um chefe, só para ter arrego e num ser rebistada. Era assim que ela passaba a heroa lá pra dentro. E tu dás oubidos a esse paneleiro? Eu só queria que biesse um arranco pra cima desse moina, e que o badalhoco do carago desse o peido mestre.

-- Ó Tininha, mas olha que num foi ele…

-- Atão, quem foi?

-- Num sei, o Adriano só me abisou

D. Clementina interrompeu o manhoso mais uma vez, mas abrindo ainda mais as goelas, como se quisesse que toda a gente ouvisse:

-- Atão ficas a saber, já que também és um manguela que emprenha pelos oubidos: o Nelinho é teu filho, oubiste? Tão certo como a minha mãezinha estar no céu, ao lado de Nosso Senhor. E se tu num fosses tão murcoum, qu'até pareces um mouro, tinhas bisto qu'o Nelinho é a tua tromba chapada. Tem a guedelha como tu, tem os galizos como tu, até tem a gaita como tu. Por isso deixa-te de merdas, dá-me de frosques depressinha, e num boltes a lebantar descunfianças, qu'aí temos o caldo entornado.

"Nelo Preto" ainda tentou:

-- Mas ó Tininha…

-- ANDOR, BIOLETA! Desanda, carago. Dá de frosques. Num tavas a jogar a sueca? Atão bai lá pró barailho, tá beinhe?

"Nelo Preto" achou melhor sair, antes que a conversa azedasse. Porra, que a Agá tinha cá uma adrenalina…! Consultou o parlo. Ainda dava tempo para beber mais um neguinhos. Com sorte, ainda podia encontrar parceiros para uma suecada. Encaminhou-se para a "Tasca do Ti Belmiro" e suspirou de alívio. Afinal, não era galhudo, e isso é que era importante.

O Nelinho era seu filho.

D. Clementina, por sua vez, tranquilizou-se. Sentia-se satisfeita com a sua consciência. Não mentira ao seu manhoso. Sabia perfeitamente quem era filho de quem, e o Nelinho era filho de "Nelo Preto".


 


 


 


 


 


 


 

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