2007-01-21

A ROTINA


Resolvi, hoje, escrever sobre a rotina. Isto, para alterar o dia-a-dia cheio do tédio de não escrever nada. Para quebrar a rotina, portanto.

Mas, antes que você, leitor, comece a ficar confuso, vou explicar-lhe o que é a rotina. A rotina mais não é que o quotidiano preenchido com os mesmos hábitos, os mesmos gestos, os mesmos pensamentos, as mesmas expressões ou palavras. É o levantar-se todos os dias à mesma hora, tomar o banho diário começando sempre por lavar a cabeça com o champô do costume, passar à lavagem do tronco ensaboando primeiro o peito depois as costas e daí descer às partes mais sensíveis, ou seja, os pés cheios de calos pelo uso rotineiro dos mesmos sapatos. Depois, é o fazer da barba sempre com os gestos de todos os dias, deixando o queixo para o fim, lavar os dentes sempre com a mesma escova, primeiro movendo-a na vertical, começando pelos dentes superiores, depois em gestos horizontais, começando pelo lado esquerdo e passando ao lado direito. Rotina é o vestir habitualmente a camisa por dentro das calças, a gravata sob a dobra do colarinho, o casaco por fora da camisa, calçar os sapatos sempre um em cada pé, invariavelmente por fora das peúgas. É o apanhar habitualmente o autocarro das 08,27h, repetir o gesto rotineiro de exibir o título de transporte. No emprego, é o intro­duzir o cartão — sempre o mesmo cartão—no relógio de ponto, que faz o rotineiro «catra-ploc»... Enfim, acho que já perceberam.

Então a rotina é má? Nem por sombras!

A rotina tem toda uma série de vantagens que só os espíritos menos lúcidos e mais obstruídos — não é o caso do autor — se atreverão a pôr em causa? Repare-se que a repetição quotidiana dos mesmos gestos e dos mesmos pensamentos evita-nos o desgaste intelectual de procurar novas atitudes, o que vai permitir desenvolver activamente a preguiça mental. Por outro lado, o corpo habitua-se, treina-se, torna-se exímio nesses gestos. Os gestos tornam-se infalíveis, precisos. Não se corre o risco de dar um beijo na secretária do chefe, por distracção, em vez de apertar a mão ao dito.

E a rotina aplicada à escrita? Ah! a rotina aplicada à escrita!...

Maravilha das maravilhas, a rotina aplicada à escrita traz-nos o produto final da moderna tecnologia de ponta, que é a frase estereotipada, ou estereótipo. O estereótipo literário permite-nos escrever correcta e claramente, sem o recurso a termos rebuscados tais como «logótipo», «hemiplégico», «caraças», «cloargirite», «redudante», isto só a título de mero exemplo, já para não falar de termos com pendor menos tecnocrático mas de sabor mais literário como «alvorada», «principalmente», «adultério», «florilégio», «a boazona do 2.° Esquerdo», etc.



Quantos de vós, principalmente os que trabalham em sectores ligados à justiça, se deixaram de deliciar com expressões estereotipadas que fazem parte do quotidiano, tais como «Tenho a honra de informar V. Ex.'», «a prisão foi legal porque efectuada em flagrante delito», «a arma que me está superiormente distribuída», «deferido», «com os melhores cumprimentos» etc.? Já viram com que facilidade se pode construir um texto de belo sabor burocrático a partir de felizes expressões de que as referidas são, apenas, arquétipos? Quem será incapaz de elaborar um relatório sem lhe enfiar, por exemplo, a frase «apesar de inúmeras diligências...»? Reparem que com esta frase, elástica e flexível, praticamente metade do relatório já está feito. E nem precisam de quantificar ou especificar as diligências. Não há que dar satisfações a ninguém; foram inúmeras e foram diligências! O resto pertence à área do segredo profissional, que não pode ser invadida.
Uma outra frase, que me esqueci propositadamente de referir, merece destaque especial. Por isso a deixei para o fim. É uma frase de pendor mais científico, com cambiantes de fino recorte literário e que, por isso mesmo, foi como que eleita rainha de todos os burocratas. Porque é uma frase que resolve praticamente todos os problemas. Porque é uma frase que não deixa 'margem para dúvidas. Porque é uma frase que funciona um pouco como a presunção Júris et Jure: não admite contra-prova.
Preclaros e pacientes leitores, apresento-
-Ihes «Para os fins convenientes».
Seja sincero, caro leitor-burocrata: como conseguiria informar o seu chefe que o autocarro esteve entalado num engarrafamento (D por isso chegou tarde) se não fosse «para os fins convenientes»? Como conseguiria justificar, perante a hierarquia a panada que deu com., a viatura de- serviço, se não fosse «para os fins convenientes»? Ê «para os fins convenientes» que você apresenta um detido em tribunal, pede para se baldar ao serviço — ou justifica a balda do dia anterior — solicita uma audiência, requer um atestado. Podem contar-
-se pêlos dedos os problemas que ficaram por resolver com a frase mágica. Aliás, estou em crer que o próprio mundo foi criado «para os fins convenientes», já que não vejo outra razão. E repare: se há um problema que você não conseguiu ultrapassar com a maravilhosa frase.
basta que do facto informe os seus superiores. Mas não se esqueça de dizer que informa «para os fins convenientes». Pronto. Problema resolvido.
Claro que você, ingénuo leitor, a esta hora está convencido de que o seu chefe, ao ver um documento «para os fins convenientes» em cima da mesa, fica atrapalhadinho.
Não, a sério, está? É nisso que pensa?
É por ter esses pensamentos, que você nunca conseguiu sair da cepa torta. Nunca chegou nem chegará a chefe! Porque você devia saber que o seu superior hierárquico nem pestanejaria. Num caso desses o chefe mantém-se imperturbável. Oual jogador de futebol, recebe a bola, prepara-a e chuta para cima com um rotundo, soberbo, infalível e definitivo «l douta consideração superior». E o seu papel vai subindo, subindo, subindo, até que você, já cansado, acaba por desistir. É que a hierarquia, meu caro, tal como o céu, não tem limites.
Mas atenção, muita atenção! É que à sombra do estereótipo queda-se, felino, vil, matreiro, subtil, enigmático, monstruoso, invisível, subversivo, omnipresente, estulto, sagaz, viperino, catastrófico, paradigmático, inconsequente, iconoclasta, ignaro, metamórfico, narcisista, insidioso, pérfido, caviloso, satânico, o «lapsus calami».
«Lapsus calami», o terror de engenheiros, arquitectos, juristas, magistrados, professores, polícias, advogados, políticos, etc.
Mas, afinal, o que é o «lapsus calami»? Apenas o fenómeno que nos leva a escrever uma coisa quando queríamos escrever outra bem diferente.
Acho que é melhor apontar exemplos. .1
Assim, um exemplo de «lapsus calami» é a inflação, quedar-se nos 6,5%. De certeza que não era aquilo que se pretendia dizer.
Outro caso: o célebre quadro representando o suicídio de Sócrates. Ali se vê que o filósofo com uma das mãos segura a taça da cicuta, enquanto que com a outra mão dá o último suspiro, o que é um grandessíssimo «lapsus calami», já que ninguém dá suspiros com as mãos.

Muitas vezes, e como atrás se disse, o «lapsus calami» deriva directamente de frases ou expressões estereotipadas, que se remetem para o papel de uma forma inconsciente. É bem conhecida a historia daquele polícia que, no seu relatório, escreveu que «o detido reagiu, pelo que tive de usar a forca muscular que me está superiormente distribuída».
Veja-se, a título de outro exemplo, um douto despacho de um juiz: «A detenção foi legal, porque em flagrante delito, por isso a valido». Frase estereotipada, pois, com o «lapsus calami» à espreita, preparado para saltar para o texto. Vejamos a continuação do despacho: «Os autos não indiciam fortemente, nem sequer suficientemente, que o arguido tenha cometido qualquer crime, nomeadamente de tráfico de droga».
Então, como é? O arguido foi detido em flagrante delito de quê?
Um outro caso curioso é o daquele Magistrado que promoveu que o arguido aguardasse «em prisão perpétua» os ulteriores termos do processo. Ê claro que o Digm.", desta forma, veria resolvido o problema dos prazos, já que o C.P.P. é omisso quanto ao regime de prazos no cumprimento da prisão perpétua.
Acho eu
Aliás, creio que é omisso quanto à aplicação da prisão perpétua. 
É por isso que estou em crer que o Magistrado queria dizer «prisão
preventiva», mas o «lapsus calami» atraiçoou-o.
É.
Deve ter sido isso...
Voltando à rotina propriamente dita e às suas vantagens, é que com o tempo vamos construindo intimamente toda uma estrutura cujos elementos se interligam de tal maneira que não admitem elementos estranhos. Por exemplo, os polícias. Já viram que maravilha é se tiverem de fazer uma participação de um crime e tiverem tido o cuidado de guardar cópias de participações de colegas mais antigos? Certamente que encontrarão um modelo que se adapte ao seu caso concreto. Aliás, polícias há que criaram modelos que tanto servem para cheques sem cobertura como para homicídios, passando, por exemplo, por desvio de aeronaves e disseminação de epi-zootias. Dão para tudo. Ê só mudar umas coisinhas aqui e ali, designadamente os nomes das partes envolvidas, e a participação está feita.
Se, por exemplo, o polícia está perante um caso de homicídio qualificado, mas só tem o modelo que dê para furto qualificado, não há que ficar atrapalhado. A solução é simples: participem o furto qualificado, e alguém se encarregará de o corrigir — se calhar... Não devem é participar o homicídio, de forma alguma. Se assim o fizerem, terão de alterar toda a estrutura do modelo e, o que é mais importante, terão de alterar toda a estrutura mental. VÃO TER DE SAIR DA ROTINA! E depois, qual é o problema? Não tiraram a vida à vítima? Então, pode ser furto!
Tudo menos sair da rotina. Poupem esforço físico e mental. Não esqueçam de que o esforço físico é necessário para o descanso, e precisam da mente para tentar não pensar em nada.