2009-08-25

A BEATA INTRANQUILIDADE

Leio, nos jornais, que os bispos portugueses se congratularam pelo facto de o presidente da República ter vetado a lei que iria dar mais direitos aos que optassem pela união de facto em detrimento do casamento.
Desde logo, parece-me que os bispos estão a fazer confusões terríveis.
Em primeiro lugar, não acho que os bispos, seja de que religião forem, tenham que meter o bedelho nas leis da sociedade secular; da mesma forma que a sociedade secular não mete o bedelho nas encíclicas. Questão de decência, apenas. E de respeito - embora eu duvide de que os bispos saibam o que é isso.
Depois, parece que ainda se julgam num estado teocrático, como nos tempos salazarentos. Na verdade, casamento não tem nada a ver com a Igreja. Há muito tempo, para que saibam. As pessoas podem, agora, casar sem terem de levar com água-benta nas trombas. Pelo civil, não sei se estão a ver.
Que os bispos se alegrem por o presidente da República não consentir uniões de facto religiosas, eu aplaudo. Era muito chato a gente assistir a cerimónias em que o padre dissesse eu vos declaro unidos de facto em vez do sacramental eu vos declaro marido e mulher. Mas não é disso que se trata. O casamento arcaico e troglodita está em vias de extinção, e os bispos ainda não viram isso. Ou viram e estão a lutar para que assim não seja.
Depois, apresentam o argumento bafiento da família como pilar da sociedade... E quem garante - para além dos pios senhores - que para haver família tem de haver casamento? Se o meu pai não for casado com a minha mãe, os outros filhos deixam de ser meus irmãos? Deixam de ser da família? Não há família?
Para quando a limpeza às religiosas teias de aranha?

2009-08-21

OS GENÁRIOS (II)

De vez em quando, acontece. São coisas que acontecem. É a vida, como diria o saudoso e nunca por demais chorado António Guterres. De vez em quando, um genário é apanhado a conduzir um carro em contra-mão na auto-estrada. Nessas alturas, a comunicação social, sempre atenta, muitas vezes veneradora e quase sempre obrigada, dá voz aos intelectuais da urbe: que são genários, que deviam fazer exame de condução de cinco em cinco minutos, que é preciso ter cuidado com os velhotes porque os seus reflexos não são iguais aos de um jovem de vinte ou trinta anos, que deviam conduzir só depois de terem feito medição à tensão arterial... E eu, sexagenário, comovo-me e mal consigo disfarçar uma lágrima ao canto do olho. "Eles" gostam mesmo de nós, os velhotes...
Entretanto, salta-me a vista, depois de enxuta a lágrima traiçoeira, uma notícia no "Jornal de Notícias": Estradas Já Mataram Mais de Uma Centena de Jovens". E a notícia vai por aí fora, e eu fico pensando que, se calhar, não é a estrada que mata as pessoas, são elas que se suicidam. O que já é grave, mas o problema é de cada um. O pior é quando suicidam os outros. E pergunto: se a notícia dá conta de que essa centena engloba jovens entre os 15 e os 29 anos, o que andam a fazer os velhotes? Deixaram de conduzir? Ou estão a renovar a carta de condução, com rigorosos exames psicotécnicos?

2009-08-13

RONALDO E A INVEJA

Ninguém, em seu perfeito juízo, tem coragem para dizer mal de Cristiano Ronaldo: ele foi considerado o melhor jogador do mundo, e a sua transferência para Espanha custou aquilo que se convencionou chamar um colhão de guita. Mas a verdade é que quando aparece alguém com incontestável valor, também aparecem os invejosos do costume. E a inveja é uma coisa muito feia. Mas a verdade é que os invejosos não só se estão borrifando para a fealdade da inveja, como também a usam, refiro-me à inveja, despudoradamente. Uma autêntica conspiração!
Vejamos: Ronaldo foi acometido de gripe. Era natural que, com aquela categoria e com o valor que tem, basta dizer que as pernas estão seguradas em vários milhões de euros, era natural, dizia, que se arranjasse uma gripe decente para o prodígio do futebol. No mínimo, uma gripe com uma letra qualquer, uma gripe que se visse. Não senhor. Numa atitude discriminatória e absolutamente humilhante, e quando toda a gente esperava que o jovem tivesse, no mínimo, uma Gripe A, eis que o menino-prodígio, orgulho de tudo quanto é tuga e crente em Fátima, e não me refiro à de Felgueiras, é acometido de uma reles gripe sazonal, como qualquer operário com o ordenado mínimo. Pior: qualquer operário com um ordenado mínimo é perfeitamente capaz de ter uma gripe com letra, nete caso o A. Nem é preciso ter ordenado mínimo, já vi desempregados e subsídiodependentes com letra na gripe. E para o herói, só comparável aos Descobridores de antanho, nem um miserável W arranjaram? Um Z que fosse. Gripe sazonal? Vergonha! Suprema humilhação! Porque, para o valor que tem este jovem, tudo o que seja abaixo de empiema metapneumónico ou, vá lá, uma gastroenterosimite, é pouco.
Como se não bastasse, a equipa da selecção portuguesa, que tem vindo a perder tudo quanto é pontapé na bola, com Ronaldo e tudo, acaba por ganhar por uns largos 3-0 à poderosa selecção do Liechtenstein. Se isto não é uma cabala, alguém faça o favor de me explicar como é que se define cabala. Então, não é que a chamada equipa das quinas ganha, precisamente, quando Ronaldo não joga?!

OS SUPERIORES INTERESSES DA CRIANÇA

Toda a gente ouviu, certamente, falar nos superiores interesses da criança. Esta é, aliás, uma bandeira que se agita freneticamente quando se pretende defender os interesses dos... adultos. Mas a verdade é que nunca ninguém conseguiu explicar o que é essa coisa dos superiores interesses da criança. Bom: nunca ninguém explicou, até agora. Porque daqui em diante deixa de haver desculpas. Porque EU vou explicar. E a explicação é simples, só me admirando ter sido eu o único, até agora, a chegar a esta aliás brilhante conclusão: os superiores interesses da criança são aqueles interesses que interessam aos pais, e, aqui, a redundância é propositada. Por exemplo: neste tempo de Verão, costume frequentar um restaurante que tem (e eu aplaudo) uma área para fumadores. Ora, os superiores interesses da criança deviam significar que a criança tem todo o direito de frequentar locais isentos de fumo e, assim, nada custaria ao(s) respectivo(s) genitor(e)s tomar assento na área menos poluída e, quando a vontade apertasse, levantar o cu da cadeira e ir fumar um cigarro... à área de fumadores. Ou lá fora. Mas os superiores interesses do adulto afirmam que esse mesmo adulto não tem a obrigação de se privar do seu cigarro enquanto espera que o empregado apareça, enquanto a comida não chega, enquanto o café arrefece, enquanto saboreia o digestivo. E a criança vai vendo como são defendidos os seus superiores interesses. Pelo que os superiores interesses da criança passam a coincidir, rigorosamente, com os superiores interesses dos adultos.
Há dias, numa fila de trânsito, verifiquei que, no carro à minha frente, seguia, divertidíssima e alegremente "solta", uma criança, no banco traseiro. Como se fosse pouco, a criança brincava na direcção do espaço que há entre os dois bancos dianteiros. Tencionando sair um pouco mais à frente, pela esquerda, ultrapassei o veículo em causa: a condutora, presumível mãe da criança, falava descuidadamente ao telemóvel.
Ao ultrapassar, olhei de relance: havia uma cadeirinha apropriada. Mas a criança ia solta.

2009-08-10

MOMENTO DE LEITURA

Vistoriaram, a seguir, ambas as portas. Ou antes, os interiores das portas já que, exteriormente, nada havia a assinalar: as inevitáveis amolgadelas e os respectivos arranhões. Foi, pois, no interior das portas, na parte que fica voltada para dentro, que os investigadores depositaram a sua atenção. Observando atentamente, «Cartabranca» concluiu:

- Esta porta é do lado direito! Do lado do passageiro… Verifiquem a outra porta.

Verificaram. Não tinha qualquer motivo de interesse.

- Mas o assento tem, Chefe – era «Toninho» que, agora, solicitava a atenção do seu superior.

«Cartabranca» não conseguiu esconder a sua completa confusão:

- Estou completamente confuso!

Voltou-se para Fonseca, que seguia atentamente o desenrolar das operações:

- De onde é este assento?

- Do Fiat, claro!

O Chefe não estava para jogos de palavras:

- Porra, que é do Fiat, sei eu. Mas de que lado? Esquerdo, ou direito?

- Este assento é do lado direito.

- Portanto, está-me a dizer que este assento é do lado do passageiro.

- Exactamente. – Fonseca não tinha quaisquer dúvidas. – Não tenho quaisquer dúvidas.

«Cartabranca», porém, decidiu mostrar-se céptico. Não que não acreditasse no especialista, mas porque não bastava, na investigação, um caramelo qualquer, por muito especialista que fosse, dizer que sim senhor, que é o assento do lado direito. Se assim fosse, muita gente estaria presa inocente, muitos culpados estariam em liberdade, e o número de almas no Purgatório não seria, certamente, aquele que as estatísticas referem. Não senhores! Na investigação quer-se rigor. Objectividade. Para que os culpados sejam presos, os inocentes libertados, e muitas das almas do Purgatório ascendam, finalmente, ao Paraíso Celeste – que o Terreno já deixou de existir há uns anos largos, graças à estupidez do Adão, que foi logo dar ouvidos à primeira gaja que lhe apareceu pela frente. Há homens que não podem ver uma mulher, começam logo a fazer asneiras, palavra de honra! Foi por essas e por outras razões, ou seja, em defesa do rigor e da objectividade, que «Cartabranca» voltou a interpelar Fonseca:

- Sr. Fonseca, explique-me, mas de maneira a que eu compreenda, em que se baseia para garantir que este assento é do lado direito e não do esquerdo.

Com uma paciência só comparável à de Job, Fonseca explicou, pormenorizadamente, que aquele assento só poderia ser do lado direito, porque, por exemplo, as calhas de deslizamento longitudinal eram diferentes, como se podia observar, aliás, por comparação com o outro assento, etc. e tal, e «Cartabranca» mostrou-se, finalmente, convencido. Já não era sem tempo! Encarou «Toninho», que tinha seguido atentamente a conversa:

- Ouviu, não ouviu? Tome declarações ao Sr. Fonseca, de maneira a reproduzir as explicações que foram dadas.

* + * + * + *


- Afinal, confessas! Então, sempre é verdade! Andas com essa ordinária, que nem sequer se lembra que é casada. E julgavas que eu ia deixar a procuração como estava? Para quê? Para gozares o dinheiro com aquela puta?

- Não a insultes!!!

- É puta, pois então! Nem uma vaca consegue ser tão puta como ela!

Bonifácio perdeu completamente as estribeiras. É numa altura destas que alguém, ou algo, talvez a tal divina providência, ou coisa parecida, devia tomar conta dos infelizes humanos, principalmente daqueles que, em situações extremas, são incapazes de meter pé ao travão das atitudes e carregar com toda a força. Eu até admito que Bonifácio tenha tentado meter o pé no travão das atitudes; mas, com a bebedeira, deve ter-se enganado e carregou no acelerador. Completamente fora de si, meteu a mão ao bolso e empunhou o revólver, apontando-o a D. Perpétua:

- Se voltas a insultá-la, mato-te!

Os relâmpagos iam iluminando a cena que, sujeita à alternância de luz e escuridão, tomava um aspecto fantasmagórico. D. Perpétua viu o brilho da arma na mão do marido, mas também ela estava cheia de raiva. E nós sabemos como, em determinadas circunstâncias, a raiva nos tira a percepção do perigo. Suponho que é assim que surgem os heróis: é quando tomam uma atitude sem medir os riscos que ela, a atitude, naturalmente, comporta. Acresce, a isto tudo, que o espaço no interior do carro não era propriamente o de um daqueles carros que nós estamos habituados a ver nos filmes americanos dos anos sessenta e que, actualmente, são parte do folclore cubano. Quer dizer, eu estou habituado, falo por mim. O Fiat Uno é um carro pequeno e, naquelas circunstâncias, o empunhar e apontar a arma obrigava a uma relação de proximidade muito íntima. Por outras palavras, a mão de Bonifácio ficou perigosamente perto da boca de D. Perpétua. Esta, com um raro sentido de oportunidade, ferrou os dentes no punho que se lhe apresentava, dando origem a que duas coisas acontecessem, quase simultaneamente: o arquitecto largou um berro capaz de acordar as rochas adormecidas, e um tiro fez-se ouvir. Como não há duas sem três, uma terceira coisa aconteceu – só que não foi causada por qualquer das personagens: um trovão ribombou violentamente. Sem qualquer prática no manejo de armas, Bonifácio tinha, ignorante e estupidamente, colocado o dedo indicador no gatilho. Reagindo à dentada de D. Perpétua, o dedo contraiu-se e premiu o dispositivo de disparo. A bala saiu e, por um capricho que só a balística conseguirá explicar, ricocheteou várias vezes no interior do carro, sem atingir quem quer que fosse. Finalmente, perdida a sua força inicial, o projéctil foi aninhar-se junto ao umbigo de D. Perpétua, que sentiu como que uma picadela, mais nada. Também se diga de passagem que não teve tempo para tentar saber qual a origem da picadela; completamente fora de si, Bonifácio deixou cair a mão que empunhava a arma uma, e outra, e outra vez, sobre a cabeça da esposa, até que esta deixou de dar sinais de reacção. O sangue começou a correr vertiginosamente da cabeça ferida, manchando o forro da porta do lado onde se encontrava. A cabeça de D. Perpétua tombou para o lado esquerdo, na altura em que Bonifácio punha o carro em movimento. A tempestade tinha passado, tão rapidamente como tinha surgido. O sangue, esse, continuava a pingar, deslizando pela napa que guarnecia a zona lateral do assento, e caindo, gota a gota, sobre o tapete traseiro

D. Perpétua respirava debilmente.



In "Não Há Crimes Perfeitos?" de José Carlos Moreira. Devidamente autorizada a transcrição parcial, por deferência do autor.

2009-08-01

OS PREGUIÇOSOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS

Logo no princípio do seu mandato, o Sr. José Sócrates tratou de diabolizar a função pública, transmitindo a imagem de preguiçosos, incompetentes, a não merecerem os rios de dinheiro que ganham. A comunicação social ou, pelo menos, alguma dela, numa espécie de regresso ao passado salazarento, foi a voz do dono. Por via disso, os funcionários públicos viram ser-lhe retirados muitos dos direitos adquiridos.
Após alguma acalmia, eis que a retrógrada comunicação social volta ao ataque, sem dúvida a mando do dono: 1) - os funcionários públicos são quem tem menos horas de trabalho semanais, em comparação à Europa; 2) - têm muitos mais dias de férias que o sector privado. Uns privilegiados, é o que eles são. Esquecem-se de dizer, nem isso convém, é que também são os que menos ganham, na Europa; e que os tais dias de férias a mais foram dados pelo Eng.º Guterres, precisamente para compensar a míngua de aumentos salariais que, durante o guterrrismo, foram abaixo de cão. Ou ainda menos. Como se fosse possível comprar batatas com dias de férias...
Vamos ter um pouco de vergonha, senhores da comunicação social.