2010-12-29

MALVADEZ OU IGNORÂNCIA?


Corre, pela "net", uma onda de protestos contra uma atitude da empresa Ensitel contra uma cliente. A onda já atingiu, aliás, os órgãos de comunicação social..

Hoje, o Jornal de Notícias apresenta um pequeno artigo onde o assunto é referido. Nada de mais, aparentemente. Mas só aparentemente.

Alguém disse, um dia, que a língua portuguesa "é muito traiçoeira". Eu vou um bocadinho mais longe: a língua portuguesa serve para atraiçoar. Por ignorância ou malvadez,

pode-se mentir dizendo a verdade; e a inversa também é verdadeira. Quem souber, minimamente, "trabalhar" com a língua portuguesa, pode escrever os maiores insultos dando, sempre, a impressão de que se está a elogiar. E isto é, apenas, um exemplo. Outro, é deturpar os factos dando uma aparência de imparcialidade e isenção.

Vamos ler o artigo. Não, não é preciso lê-lo todo. Basta só esta parte: "Em causa está o facto de a Ensitel ter exigido que Maria João Nogueira (…) retirasse o texto". O que é

rigorosamente verdade. Mas o articulista prossegue: "O caso Chegou ao Centro de Arbitragem de

Conflitos de Consumo (CACC) e ao tribunal, que deram razão à empresa". O que também é verdade, só que a razão não se prendeu com o tirar ou não tirar o texto, mas sim com as razões da reclamação. É a chamada "descontextualização", muito conveniente, por vezes.

Aliás, uma consulta ao "site" onde estes factos estão referidos permite-nos ficar a saber que:

  1. – A autora comprou um produto na Ensitel.
  2. – O produto apresentava deficiência grave.
  3. - A Ensitel não resolveu o problema.
  4. - A cliente recorreu ao CACC, que deu razão à empresa.
  5. - A cliente relatou a "odisseia" no blogue.
  6. – A Ensitel intimou a cliente a retirar os textos do blogue.

Por isso, não se percebe a razão que levou o plumitivo a escrever o artigo, de maneira a dar a impressão de que o tribunal e o CACC deram razão à Ensitel relativamente à retirada dos textos. Pelo menos, é o que se depreende da leitura do artigo.

Ignorância? Malvadez? Tentativa de branqueamento? Ou simples auto-atestado de iliteracia?

2010-12-23

A MITOLOGIA DO NATAL


Escrito por Luís Grave Rodrigues | Publicado em Diário Ateísta

Estando noiva de José, e antes ainda de com ele ter coabitado, Mariaapareceu grávida por acção do Espírito Santo.

Quando José se preparava para a repudiar, apareceu-lhe em sonhos um “anjo do Senhor” que lhe ordenou que recebesse Maria em sua casa e que aceitasse o filho que ela carregava como obra do Espírito Santo.
Quando a criança nasceu, e tal como o anjo lhe havia ordenado, pôs-lhe o nome de Jesus.
Todas as culturas antigas, sem excepção, tinham um horror profundo e visceral à esterilidade. O que é absolutamente compreensível, face à óbvia conexão entre a própria sobrevivência da tribo ou de uma determinada sociedade e o seu fortalecimento face aos povos vizinhos e rivais, por exemplo, em disputas territoriais.
Não é, por isso, de estranhar que desde a sua origem todos os cultos religiosos revelem nas suas mitologias e iconografias não só esse temor, como muito principalmente uma óbvia preocupação pela fecundidade.

De tal forma que nas mais remotas manifestações de religiosidade o lugar de Deus foi ocupado por uma mulher.

Só muito mais tarde a mulher foi relegada para um papel de mãe, esposa ou amante do Deus, sempre com a responsabilidade da renovação e da reprodução, mas também obviamente virgem, como convém a toda a terra que vai receber uma nova semente e de quem se espera a máxima fecundidade.
Por isso, também, só de uma divindade é possível esperar o dom da fecundidade, principalmente quando se trata de uma mulher estéril que acaba por dar à luz, um milagre que obviamente só está ao alcance de Deus.
Ao mesmo tempo, constitui prova inequívoca da proximidade de um homem a Deus o facto de ter nascido do milagre da concepção de uma mulher virgem.

Assim, vemos que essa associação entre uma concepção milagrosa e a deificação do filho nascido de um fenómeno que só está ao alcance de Deus (sempre após uma história mais ou menos fantasiosa de uma «anunciação» feita por um anjo ou qualquer outra entidade celestial, seja ao vivo ou em sonhos), é afinal perfeitamente vulgar e recorrente em todos os cultos religiosos da antiguidade e, curiosamente, nas mais distantes regiões do planeta.
Aparecem então como filhos de mães virgens tanto Deuses como grandes personagens, como os imperadores Chin-Nung, da China, ou Sotoktais do Japão, ou como os Deuses Stanta, na Irlanda, Quetzalcoatl do México, Vixnu da Índia, Apolónio de Tiana da Grécia, Zaratustra da Pérsia, Thot do Egipto, ou como Buda, Krishna, Confúcio, Lao Tsé, etc., etc.

O mito vai mesmo ao ponto de Gengis Cã ter um belo dia determinado que também ele era filho de uma mulher virgem, para se deificar aos olhos do seu povo e dos povos que ia conquistando, e para se fazer obedecer e respeitar cegamente como um Deus pelas suas tropas.
Entre os mais famosos homens filhos de mulheres virgens está, como é sabido, Jesus Cristo.
É também muito curiosa a mitologia comum relacionada com o nascimento destas personagens deificadas pelo seu nascimento de mulheres virgens, como sejam a existência de estrelas ou sinais celestes que os anunciam ou comemoram: uma milagrosa luz celeste anunciou a concepção de Buda, um meteoro o nascimento de Krishna, uma estrela o nascimento de Hórus e uma «estrela no Oriente» o nascimento de Jesus Cristo, embora somente o evangelho de Mateus se lhe refira, sendo pacificamente aceite que não mais do que para corporizar ou fazer concretizar (quase um século depois da morte de Jesus Cristo) profecias messiânicas do Antigo Testamento.
Ao mesmo tempo, é também absolutamente natural que faça parte dos cultos de fecundidade a adoração de Deuses relacionados com o ciclo solar e com a renovação anual das estações do ano e, com estas, as colheitas ou a produção de gado, com especial incidência e manifestação em festas, mitos, cerimónias e ritos religiosos comemorativos, realizados normalmente nos Solstícios, preferencialmente no Solstício de Inverno.
A corporização mais comum destes Deuses de renovação e de fecundidade é feita em relação ao Sol, símbolo perfeito da sucessão regular e infalível dos dias e das estações do ano, quer seja adorado como um Deus em si, e em praticamente todas as civilizações conhecidas, das Américas Central e do Sul, ao Egipto, passando pela Suméria ou Mesopotâmia, quer também através de outros Deuses «solares», como o Deus-faraó egípcio Amenófis IV, que reinstalou o culto de Áton (Sol) e mudou mesmo o seu nome para Aquenáton, ou como Deuses que resultam da antropomorfização do Sol, como os Deuses Hórus, Mazda, Mitra, Adónis, Dionísio, Krishna, etc.
Destes Deuses, um merece especial referência: Mitra.

Mitra é um dos principais Deuses iranianos (anteriores a Zaratustra), simbolizado com uma cabeça de Leão (representação típica dos Deuses solares) e conhecem-se manifestações do seu culto já com mais de mil anos antes do nascimento de Cristo.

Mais tarde os romanos adoptaram o seu culto e incluíram-no mesmo no seu panteão.
Enquanto divindade, as funções de Mitra eram carregar com a iniquidade e os males da Humanidade e expiar os pecados dos homens.

Mitra era também visto como meio de distinção entre o bem (Ormuzd) e o mal (Ahriman), como fonte de luz e sabedoria e estava ainda encarregue de manter a harmonia no mundo e de proteger todos os homens.
A mitologia do Deus Mitra tinha-o como um «enviado», ou um Messias, que voltaria ao mundo para julgar toda a humanidade.

Sem ser o Sol propriamente dito, Mitra era tido como seu representante, sendo invocado como o próprio Sol nas cerimónias do seu culto, onde era tido como espiritualmente presente no interior de uma custódia, por isso colocada em lugar de especial destaque.
Todos os Deuses solares depois de expiarem os pecados dos homens acabam por morrer de morte violenta, acabando depois por ressuscitar ao fim de três dias e de ascender aos Céus ou ao Paraíso.
Hórus morre em luta com o mal, corporizado no seu irmão Seth (identificado com Satanás), que o coloca num túmulo escavado numa rocha, ressuscitando ao fim de três dias para subir ao Paraíso.

O Deus hindu Xiva sacrifica-se pela humanidade, e morre ao ingerir uma bebida corrosiva que causaria a destruição e a morte de todo o mundo, acabando também por ressuscitar ao fim de três dias.

O Deus Baco foi também assassinado, tendo ressuscitado três dias depois, através dos seus pedaços recolhidos por sua mãe.

O mesmo acontecia aos Deuses Ausónio, Adónis ou Átis, que morriam para salvar os homens ou expiar os seus pecados e acabavam por ressuscitar ao fim de três dias.
E todos eles a 25 de Dezembro.
Uma vez mais, um dos mais famosos «ressuscitados» é Jesus Cristo, embora este tenha ressuscitado em metade do tempo dos restantes Deuses, talvez somente um dia e meio depois, embora a sua mitologia continue a mencionar os três dias.
Ou seja: a figura de Jesus Cristo, e toda a religião e mitologia cristã, foram construídos com base num modelo pagão dos deuses solares que então se conheciam.

A própria escolha da data de 25 de Dezembro para comemoração do nascimento de Jesus Cristo é disso um inequívoco exemplo.
Aliás, esse dia 25 de Dezembro (o dia das festividades dos Deuses Mitra, Baal e Baco) só foi adoptado pela Igreja Católica já no século IV, por decisão do Papa Libério, com o óbvio objectivo de “cristianizar” os cultos solares, então ainda muito populares e difundidos e de os fazer confundir e “absorver” pelos próprios ritos cristãos, dada até a proximidade com a data do Solstício de Inverno – data da “morte” do Sol no horizonte – e a data em que o Sol “ressuscita” e se eleva novamente horizonte três dias depois, exactamente no dia 25 de Dezembro.

Merece especial referência o facto de todos esses Deuses solares serem representados fisicamente com a cabeça rodeada de um disco ou uma auréola amarela, como ainda hoje acontece com os Deuses e até com os santos católicos.

Aliás os próprios imperadores romanos que governaram no auge do culto destes deuses solares faziam-se representar devidamente aureolados, por exemplo nas moedas que mandavam cunhar.
O imperador Constantino, a quem se deve a criação da Igreja Católica Apostólica Romana (e que nunca se converteu ao cristianismo, antes o tendo adoptado como religião oficial do império, sem nunca proibir as restantes, para melhor o unificar), mandava realizar regularmente sacrifícios em honra do Sol e as moedas que mandou cunhar continham a inscrição «Soli Invicto Comiti, Augusti Nostri».
Não obstante a oficialização do cristianismo no seu império, Constantino manteve a obrigatoriedade de as suas tropas rezarem e prestarem culto ao Deus Sol todos os Domingos, isto é, «O Dia do Sol».

Também neste dia do Sol se pode ver a óbvia influência destes cultos na formação dos ritos católicos, com a mudança do «Sétimo Dia» ou «Dia do Senhor» bíblico do Sábado para o Domingo, uma vez mais com o objectivo de fazer “absorver” as festividades e os ritos solares, nem que para isso se tenha tido de “aldrabar” a própria redacção de um dos mandamentos trazidos por Moisés do cimo da montanha.
Como se não bastasse a óbvia coincidência ritualística dos cultos solares com os cultos cristãos, como a morte violenta e ressurreição três dias depois, da presença física do Deus na custódia, no nascimento de uma mulher virgem, do «Dia do Senhor» como «Dia do Sol» (Sunday, em inglês), da auréola solar a coroar as divindades, da designação e da forma radiada do chapéu dos bispos católicos, ou «mitra», é precisamente com este Deus Mitra que se dá o mais curioso aproveitamento dos ritos e cultos solares por parte da Igreja Católica.
De facto, segundo a sua mitologia, muito popular por volta de 1.000 a.C., Mitra nasceu de uma virgem; nasceu no dia 25 de Dezembro; nasceu numa cova ou numa gruta; foi adorado por pastores; foi adorado por três magos ou sábios 12 dias depois do seu nascimento, a 6 de Janeiro, que interpretaram o aparecimento de uma estrela no céu como anúncio do seu nascimento, pregou incansavelmente entre os homens a sua mensagem de bem por oposição ao mal; fez milagres para gáudio dos que o seguiam; foi perseguido; foi morto; ressuscitou ao terceiro dia; o rito central do seu culto passava pela distribuição de pão e vinho entre os iniciados presentes, numa forma de eucaristia de composição e fórmula em tudo idênticas à que a Igreja Católica viria a adoptar.

Já na mitologia de Hórus, que teve o seu auge cerca de 2.000 aC., se passa exactamente mesma coisa. Hórus é filho de Osiris e de Isis, a sua mãe virgem que engravidou de um espírito com a forma de um falcão, com a curiosidade ainda de ter um pai terreno com a profissão de carpinteiro. Também foi traído, torturado e morto, ressuscitando ao terceiro dia, o mesmo dia 25 de Dezembro.

Em suma:

Independentemente da bebedeira consumista que se apodera das pessoas, o que actualmente se comemora como o nascimento de Deus, na forma de «Deus Filho», ou de «Menino Jesus» (como se sabe, um dos Deuses da Mitologia cristã), não é mais do que a apropriação de um culto pagão, de um «Deus Solar», como tantos houve durante a História dos Homens.
Para um católico, dir-me-ão, este aproveitamento ritualístico será irrelevante, na medida em que o seu significado mítico ou simbólico, qualquer que seja a forma ou a data em que se realiza, continuará sempre a ser (actualmente) o nascimento de Jesus Cristo, como referi um dos (muitos) Deuses da mitologia cristã.

É certo.

Mas é também certo que esta apropriação existiu de facto, e o seu significado como fenómeno antropológico não pode ser ignorado.

Como também não pode ser ignorado, ainda assim, o manifesto significado simbólico, mítico e até místico dessa mesma apropriação.
Até por que uma coisa mais terá de ser realçada, essa sim, talvez a que contenha uma maior valoração simbólica deste aproveitamento e apropriação ritualísticos:

- É que, como não podia deixar de ser, toda esta transformação e apropriação foram feitas sob a égide de um Papa, mais exactamente do Papa Libério (352-366) e sob a força legislativa e fortemente repressiva do Imperador Constâncio II que, com mão de ferro e com uma ferocidade inaudita e que ficou na História, as impôs pela força das armas.
E assim, uma vez mais, vemos que também o ritualismo desta nova mitologia cristã, mesmo esta que se refere ao próprio nascimento do seu Deus, deste «Menino Jesus» deitado nas palhinhas, uma vez mais teve de ser impiedosamente imposta aos Homens pela força.

Obviamente depois do conveniente e costumeiro… banho de sangue…

2010-12-22

AGRADECIMENTO

Venho, por este meio, apresentar público agradecimento ao nosso querido líder, o Primeiro-Ministro. E passo a explicar porquê, como não podia deixar de ser.
Na minha qualidade de pensionista, costumava receber a minha pensão no dia 19 de cada
mês. Às vezes antes, se o dia 19 coincidia com um sábado, domingo ou feriado. Todos nós sa
bemos como é, normalmente, triste a vida de um pensionista, a esperar, ansiosamente, a chegada do dia 19, e a verificar que há mais mês que dinheiro. Claro que há excepções,
o que quer dizer que a regra existe.
Mas o nosso primeiro-ministro, com a lucidez que o caracteriza, e com a profunda preocupação em melhorar, a cada dia que passa, a vida dos portugueses, principalmente dos mais desfavorecidos, tomou uma medida que se pode considerar corajosa, frontal, inédita, e que vai abalar os alicerces da indigência em que milhares de portugueses vegetam. Alegrai-vos, pensionistas portugueses! Ides passar a receber a pensão ao dia 10. Acabou-se a infindável e angustiada espera pelo dia 19, que tanto demorava a chegar! Vá, lá, não sejam ingratos. Façam bem as contas: sempre são menos nove dias, não é verdade? O que significa que, daqui em diante, o mês vai ser nove dias mais curto, os pensionistas têm, a partir de agora, obrigação de poupar, têm o dever de ter uma vida melhor, mais desafogada. Quem sabe, se calhar é a altura de fazer aquele cruzeiro de sonho...
E não se esqueçam de colocar a cruzinha, quando forem a votos.

GLOSSÁRIO

Para quem teve a imensa pachorra de ler o meu artigo anterior e, chegando ao fim, ficou a perceber o mesmo, por via do desconhecimento dos palavrões inseridos, só acessíveis aos eleitos, aqui vai um pequeno glossário, que os ajudará a perceber que, afinal, "Nelo Preto" era pai do "Nelinho".

Quanto aos outros... Bem, quanto aos outros...

O melhor é voltarem a ler o artigo, agora com a ajuda do Glossário.

Boas leituras.


A

Abichar: conseguir, obter.

Achantrar-se: o m. q. abarbatar-se; apoderar-se de; pegar.

Afiambrar: v.i. – levar tareia. V.t. – dar tareia: afiambrei-lhe dois estalos.

Agá: esposa ou amante. Companheira

Agá: esposa ou amante. Companheira

Alapado: Sentado.

Alquinar: o mesmo que dar de frosques, frosquinar. Sair rapidamente, fugir.

Amandar: Apresentar, mostrar, dirigir, mandar.

Andar à sombra da bananeira: não ter ocupação honesta, viver sem trabalhar.

Arraial de facho: Grande tareia.

Arranco ou gaiolo: automóvel.

Arranjar um caldinho: criar um problema.

Arrego: influência, no sentido de cunha.

Atão_ forma portoguesa de dizer Então.

Axandrar(-se): Acalmar(-se).


B

Bai no Batalha: o m. q. vai no Batalha; é grupo. É mentira.

Barailho: forma portoguesa de dizer baralho.

Bastelo: mão.

Bazar: sair.

Beinhe: forma portoguesa de dizer bem.

Boa como o milho: mulher jeitosa. O m. q. traço.

Bola: liberdade

Bófia: polícia, geralmente P.S.P.

Bulir: mexer-se, fazer algo. Aqui, no sentido de trabalhar.

Bute! Siga! Toca a andar!


C

Cacau: o m. q. dinheiro; guito, arame, narta

Calcantes: o m.q. chiantes. Sapatos.

Cana: prisão.

Carago: O m.q. caraças. Provirá do espanhol carajo, e supõe-se que foi herdado dos muitos galegos que, noutros tempos, trabalhavam no Porto. É conhecida a expressão trabalhar como um galego, a significar trabalhar muito.

Carapins: sapatos de dormir

Cardenhola: assaltante de residências.

Cena macaca: Situação caricata, curiosa ou complicada.

Chantra: prostituta.

Chavalo: rapaz

Chibo, chibato ou chibatola: Denunciante, delator.

Choca: vaca.

Chocho: beijo.

Chordar: furtar, roubar.

Chunga: De baixa qualidade

Contista: profissional do conto do vigário. Burlão.


D

Dar à tramela: Dar à língua, falar.

Dichavar: interrogar. Ser dichavado, ser interrogado


E

Encher a blusa: comer gulosamente. O m. q. encher a mula.

Entrar de chancas: Entrar ruidosamente. No caso, abordar o assunto de chofre.

Escorropichar: beber até à última gota.

Esganar um paivante: fumar um cigarro.

Esmifrar: Ganhar, mas pode ter outros significados.

Estar com o Chico, ou com a Chica: estar no período menstrual.

Estar com os azeites: estar irritado/a.

Estar feito ao bife: ter um problema grave.

Estar na merda: sentir-se frustrado ou infeliz.

Estrilho: sarilho, confusão.


F

Fabiano: o mesmo que gajo, mânfio.

Famelga: família.

Faróis: olhos. O m.q. galizos.

Fazer brasa: estar calor.

Fronha: o m. q. tromba, facha, fila. Face.


G

Gaija: Termo portoguês para gaja.

Gaijo: Termo portoguês para. gajo.

Gaiolo: ver arranco.

Gaita, ou tringalha: órgão sexual masculino.

Gafas: Óculos.

Galdinas: Calças.

Galhudo: cornudo.

Galizos: Olhos. O m. q. faróis.

Gâmbias: Pernas.

Ganapada: grupo de crianças, as crianças em geral. O m. q. criançada.

Ganapos: O m.q. a canalha, os putos.

Gangada: Rapaziada; malta.

Ganzado: drogado.

Garina: mulher, rapariga.

Geraldina: acto sexual com mais do que um homem.

Grevas: pernas. O m. q. gâmbias.

Grunho: porco.

Guito: o m. q. narta, arame, guita, cacau, etc. Dinheiro.


H

Heroa: heroína (estupefaciente)

Home: forma portoguesa de dizer homem.


I


Intruja: O m.q. recepta. Receptador.

Ir de cana: ir preso.

Ir pró penico: ir por água abaixo, não dar resultado.


J

Juro, ou julgo: Julgamento

Justina, ou Judite: Polícia Judiciária.


L

Lanceiro: o m. q. cabedaleiro, carteiro; carteirista.

Laurear a pevide: andar a vaguear sem destino, desocupado.


M

Mais que pôr ao sol (ter): ter mais que fazer, ter outras e mais prioritárias preocupações.

Mânfio: homem, em sentido pejorativo.

Manguela: vagabundo, vadio.

Manhoso: amante, companheiro. O masculino de Agá.

Manjar: o mesmo que gonar, micar. Reparar, ver.

Maralhal: o m. q. maralha. As pessoas.

Mata-bicho: pequeno-almoço

Meter para a veia: injectar-se com substâncias ilícitas.

Micharia: coisa com pouco, (ou sem) valor.

Mijar fora do penico: ter comportamento inadequado.

Mouro: o m. q. lampião. Forma simpática e carinhosa para se referir a lisboeta ou a adepto do S.L.B.

Murcoum: forma portoguesa de dizer morcão.

N

Não é grupo: Não é mentira.

Nãoe: forma portoguesa de dizer não (Ver num).

Narta: dinheiro.

Négos: era um copo de vinho, normalmente servido ao balcão. Não sei, ao certo, qual a medida do copo, mas presumo que andasse pelos 2,5dl, mais coisa menos coisa. Normalmente, menos coisa.

Num: forma portoguesa de dizer não. Ex. num é em vez de não é.


O

Otário: vítima.

Ourina: Ouro. Objectos de ouro.


P

Palanfrório: Palavreado.

Parlo: relógio de bolso.

Pasma, mono ou pasmarola: polícia de giro, espécie entretanto extinta.

Passar a ferro: Neste caso, tem o sentido de atropelar.

Pau de virar tripas: Mulher exageradamente magra.

Peido mestre (dar o): morrer.

Penca: Nariz.

Piconera: GNR.

Pinocada: acto sexual.

Pirisca ou prisca: o m. q. beata. O que resta do cigarro, depois de fumado.

Porco limposo: sujo, mas aparentando estar limpo. P. ex. não toma banho mas veste roupa lavada.

Pôr a boca no trombone: Esclarecer tudo, pôr tudo em pratos limpos.

Pôr ao sol: confessar, explicar.

Pôr-se a fangues: acautelar-se, ficar à defesa.

Prateleiras: Seios.

Prisa: prisão


Q

Quilhe (que se quilhe): o m.q. que se lixe; quero lá saber!


R

Regueifa: Traseiro de mulher.

Repas: franjas.


S

Sentir-se na merda: ver
Estar na…

Soleno (de soleno, ou pelo soleno): com calma, serenamente, discretamente.

Sulipampa: desfalecimento, o m. q. badagaio


T

Tirar nabos da púcara: obter informações discretamente.

Tótil: muito
ou
muitos.

Traço: Mulher bonita e jeitosa. O m. q. boa como o milho.


V

Vagens: feijão verde.

Vai no Batalha: o m.q. bai no Batalha.

Velhota: mãe

Vergar a mola: o mesmo que bulir.


Z

Zobaida: Mulher gorda.

UM CONTO DE VEZ EM QUANDO


 


 

"NELO PRETO"


 


 

Hoje, vou falar-vos do Porto. Não do Porto do otorrinolaringologista, mas do Porto do médico dos oubidos; não do Porto do ácido acetilsalissílico, mas do Porto da aspirina; não do Porto do ácido desoxirribolucleico, mas do Porto do que merda é essa, carago?

Em tempos que já lá vão, mas não vão assim há tanto tempo como isso, era a Areosa o reino e refúgio de tudo quanto era lanceiro e contista sem desprimor, naturalmente, para a muita gente séria que vivia na zona. E continua a viver, graças ao Senhor. Se não aquela a que me refiro, que já deve ter ido fazer tijolo na quinta das tabuletas, que o tempo não perdoa, pelo menos outra, porque apesar da morte, a vida não pára. Nesse tempo, quando o viaduto da Areosa ainda era um sonho, o espectáculo diário era dado pelo cabeça de giz que, junto ao posto da então Polícia de Viação e Trânsito, no preciso local para onde convergiam, e donde divergiam, de acordo com os respectivos sentidos de trânsito, as ruas de Costa Cabral, rua D. Afonso Henriques, e as estradas Interior e Exterior da Circunvalação, orientava o trânsito. E era vê-lo a passar da "Interior" para a "Exterior", e manda parar, e manda seguir, e manda virar, e apita, e esbraceja qual vira-vento, e vira as costas e rodopia, até que, já cansado, se encosta ao posto da PVT a fazer um intervalo enquanto esganava um paivante. Que se quilhe o trânsito!

Hoje, tudo está mudado, na Areosa. O sinaleiro alquinou, para ser substituído, depois de centenas de acidentes, como é uso em Portugal, por desengraçados semáforos. Orgulhosamente, a Areosa exibe o seu viaduto mas deixou que emigrassem os carteiristas e fauna circundante, num empobrecimento inqualificável do nosso riquíssimo e vastíssimo folclore. Mas algo ficou desse passado deslumbrante: o riquíssimo vocabulário marginal, que acabou por sair do núcleo fechado dos carteiristas e burlões, para extravasar para outros tipos de comportamento desviante, por exemplo os cardenholas, onde se misturou graciosamente com outros falares portogueses.

Foi, pois, numa Areosa mais recente, que fomos encontrar "Nelo Preto" e sua honorabilíssima agá, D. Clementina, a "Tina".

Cabe, aqui, abrir um espaço, não muito grande, mas o suficiente para justificar a forma pretérita como esta descrição é feita: "Nelo Preto" vive, hoje, honestamente do Rendimento Social de Inserção que, à data a que os factos se reportam, dava pelo nome de Rendimento Mínimo Garantido, que obteve com o suor do rosto, como devem calcular. Mas nem sempre viveu assim.

"Nelo Preto" era um respeitável, conspícuo e conceituado cardenhola. Aliás, "Nelo Preto" não gostava que lhe chamassem cardenhola; de cada vez que ia de cana declinava, como profissão, Técnico de Redistribuição de Rendimentos, que sempre é coisa mais fina. Do mesmo modo, D. Clementina auto-intitulava-se Supervisora Geral de Bem-estar, Higiene e Saúde, nome pomposo para Empregada de Limpeza, profissão que exercia em concomitância com a de Cobradora de Rendimento Mínimo Garantido. Ora, para não engrupir o leitor, o diligente autor destas humildes linhas correu Ceca e Meca para tentar obter resposta para a pergunta que se adivinha, e que é "Nelo Preto", porquê? Claro que nesta altura da leitura, já o leitor terá chegado à conclusão, ora, se se chamava "Nelo Preto" é porque era escarumba, o que até uma conclusão lógica, intuitiva, evidente e racional mas, caro leitor, deixe-me dizer-lhe, bai no Batalha, que o "Nelo Preto" era branco. Caucasiano, para ser mais específico. Como se não bastasse, era branco e tinha cabelo loiro, sim senhores, loiro natural e tudo, que o homem não gramava águas oxigenadas, e mesmo as outras mais não serviam do que para tomar banho, o que acontecia quando Deus queria, sendo certo que Deus raramente estava para aí virado, aliás tinha, e continua a ter, acho eu, mais que pôr ao sol, basta dar uma vista de olhos aos jornais para concluir, sem a menor dificuldade, que ser Deus não é para qualquer um, não é tarefa fácil, é preciso tê-los no sitio. Pois bem, o nosso Manuel, donde derivou o diminutivo "Nelo", pronto, esta parte já está esclarecida, não obstante a brancura da pele tinha o cabelo encarapinhado como se de um preto a sério se tratasse, embora fosse branquinho da Silva como os brancos. Ora, aconteceu que a certa altura das investigações perdi-me, há que confessá-lo, pelo que não me foi, humanamente, possível abichar a razão pela qual um branco tinha o cabelo loiro, o que, só por si, nem espanta por aí além, mas loiro e encarapinhado, e isso sim, já é de aparvalhar qualquer um. Resta-me, pois, apresentar uma teoria, muito minha e da qual já efectuei o competente registo, não vá alguém abarbatar-se, pois bem, algures na árvore genealógica de "Nelo Preto", e teria que ser, garantidamente, a montante, houve uma pinocada, pelo menos uma, com alguém de etnia africana, não há outra explicação para a encarapinhada grenha, não dá para saber se foi gajo ou gaja, nem isso interessa para o caso, sendo certo que um nórdico ou nórdica também não estará inocente no meio disto, e a deriva genética encarregou-se de fazer o resto, toda a gente sabe que a genética, tal como as maldições divinas, se perpetua por uma data de gerações. Certo, certo, é que "Nelo Preto" todos os dias suava como um cavalo para conseguir desencarapinhar ou, pelo menos, dar um aspecto decente ou, vá lá, arrumado, a todo aquele loiro emaranhado piloso.

"Nelo Preto" era o babado, putativo e alegre pai de quatro encantadores chavalos, Pormenor, se não importante, pelo menos curioso, é que Nelinho, o mais velho, era o único loiro, de faróis azuis como a velhota, contrastando flagrantemente com os seus três manos, todos eles morenos e de galizos bem castanhos. Claro que esta singular circunstância dava direito a olhares de esguelha do mulherio vizinho, tanto mais que eram longas e frequentes as estadas de "Nelo Preto" na cana, embora são seja de desprezar o facto, e isto não é grupo, de o hóspede do Estado ser beneficiário de inúmeras saídas precárias, as quais eram concedidas face ao bom comportamento do nosso "Nelo", bastando, para ser avaliado esse bom comportamento, que "Nelo Preto" estivesse mais de quinze dias sem cometer qualquer assalto. Claro que durante as precárias a conversa era outra, que a famelga a sustentar era grande e o cacau que D. Clementina esmifrava tinha de ser esticado de maneira a que não sobrassem muitos dias no fim do ordenado. O Rendimento Mínimo sempre era uma ajuda, mas, mesmo assim, insuficiente, basta fazer as contas a cinco mata-bichos no café do senhor Fonseca, seis, se o "Nelo Preto" estava fora da cana, ou seja, estava com a bola, tomados diariamente, a que se devem acrescentar os também diários lanches, que a ganapada era de muito sustento e não se contentava com micharias, o que nos leva, inevitavelmente, para as subtilezas da língua portuguesa, que isto das conversas é como as cerejas, a gente puxa uma e vem uma catrefada delas dependuradas. Toda a gente sabe que a língua portuguesa é dinâmica, a portoguesa nem falar, isto é, há vocábulos e/ou expressões que acabam por cair em desuso, enquanto outros vocábulos e/ou expressões vão aparecendo. Há tótil anos, bastantes, demasiados para o meu gosto, o mulherio alcoviteiro costumava mandar umas bocas do tipo, e isto é um exemplo completamente ao calhas, ó comadre, já biu que o sr. Antunes "num" bole, a mulher também "nãoe", mas bão tomar o mata-bicho todos os dias ao café, bão lanchar todas as tardes, enchem a blusa como desalmados de que é que biberá o homem? e a resposta lógica, tendo em conta a época, era, mais ou menos, atão num sabe, Dona Adozinda? O sr. Antunes bibe dos rendimentos ora, hoje em dia tal expressão não tem o menor significado, pelo menos dentro do contexto, quem vai tomar o mata-bicho todos os dias ao café, e lanchar, também diariamente, não vive dos rendimentos, que a vida está má para todos, mas vive, com certeza absoluta, do Rendimento, estão a ver como o desaparecimento de um simples "S" alterou tudo, digam lá que a língua portuguesa é chata, mas voltemos ao que interessa, que é a forma como "Nelo Preto" se ocupava a compor o Rendimento.

Pois bem, durante as precárias, "Nelo Preto" lá tinha de bulir, de vergar a mola, como diz o outro. Fazia pela vida e dava que fazer, que o mânfio podia ser cardenhola mas não era egoísta. Dava que fazer à polícia e aos otários, naturalmente, que nunca mais voltavam a pôr a vista em cima de tudo o que "Nelo Preto" pudesse abarbatar, mas passavam o resto da vida a ser dichavados na bófia ou na justina, às vezes até a piconera metia o bedelho, e a fazer diligências de reconhecimento de objectos e suspeitos, diligências que, invariavelmente, iam pró penico. "Nelo Preto" gramava mais achantrar-se a narta, e a ourina, que era mais fácil de passar, aos intrujas, embora não desprezasse computadores, portáteis ou de secretária, telemóveis e televisores de plasma, que os outros são muito volumosos e difíceis de transportar e, além disso, já estão a ter pouca saída, porque quem compra um aparelho de televisão, mesmo que seja chordado, quer sempre a última palavra em tecnologia, se uma pessoa investe, e o termo investe não tem, aqui, qualquer conotação taurina, bovina que seja, dizia que quando se investe, mesmo que na candonga, investe-se em coisa boa. Houve, um dia, uma cena macaca, que não resisto à tentação de contar, "Nelo Preto" tinha assaltado um cardenho, mais concretamente uma vivenda, trabalho limpo, os donos, completamente distraídos ou desprevenidos tinham deixado as portas fechadas só com os respectivos trincos, entrar ali foi mais fácil do que meter uma dose para a veia, mas as coisas nem sempre são o que parecem, quando "Nelo Preto" entrou no cardenho
sentiu-se na merda, a casa estava vazia, os donos tinham-se mudado e haviam levado tudo com eles, não pôde evitar uma imprecação, filhos da puta, não se pode confiar em ninguém, apesar de tudo ainda deu uma volta pela casa, não fossem os anteriores ocupantes ter-se esquecido de alguma coisa, ó carago, um par de calcantes
novos em folha, olha, não perdi tudo ao menos dá para meias-solas, conforto efémero e inadequado, inadequado porque os chiantes estavam novos, como disse, e não precisavam de meias-solas para nada, efémero porque "Nelo Preto" calçava 41 e os sapatos eram 44, grande pata tinha o gajo, devia ser cá um calmeirão… Olha, que se lixe, pode ser que o recepta me dê qualquer coisa por eles, sempre são novos a estrear, mas o recepta não estava para aí virado, tu estás mas é ganzado, "Nelo", quem é que quer calcantes em segunda-mão? nem por vislumbre se apercebeu do anedótico disparate, sapatos em segunda-mão não existem, quando muito em segundo-pé, ninguém anda com os sapatos nas mãos, não tardará muito, é certo, a julgar pelo número, cada vez maior, de pessoas que usam gafas na cabeça e brincos na penca, que a moda já não é o que era, como dizia Confúcio, o tempora o mores, se não foi Confúcio foi alguém por ele, mas podia, perfeitamente, ter sido Confúcio, se o homem soubesse falar latim, o que não está suficientemente demonstrado.

Bute! Quando não estava a trabalhar nem dentro, "Nelo Preto" era frequentador da "Tasca do Ti Belmiro". Pois foi precisamente na "Tasca do Ti Belmiro" que "Nelo Preto" começou a ter espírito santo de orelha e se foi apercebendo de bocas foleiras, cochichadas primeiro, a meia voz depois, audíveis finalmente. Aliás, para sermos mais concretos, foi o "Adriano Manco" quem puxou a conversa. "Nelo Preto" estava num intervalo, ou seja, tinha acabado o cumprimento de uma pena e aguardava o juro que, fatalmente, o iria levar para outra. Naquele momento, encontrava-se alapado a uma mesa, com um néguinhos de tintol à sua frente, que ia beberricando a espaços. Adriano Manco chegou-se e alapou-se também:

-- Ó Nelo, eu não tenho nada a ber
co a tua bida, como dizem os franceses, "chacun sabe de si", mas não gramo nada oubir a maralha a falar mal nas tuas costas. E o que se diz é chunga pra carago.

-- Desembucha, pá! Não dizem que sou chibo, pois não? É que se algum filho da…

-- Descansa, que não é nada disso – interrompeu Adriano, e o autor destas linhas agradece a interrupção, já que aquele filho da… iria redundar em palavrão, e esse tipo de linguagem não tem, aqui, qualquer espécie de cabimento. Estamos no âmbito da literatura séria, e não da escrita obscena. "Adriano Manco" prosseguiu:

-- Andam aí uns mânfios a mandar umas bocas… Sabes como é, a gangada anda à sombra da bananeira e a laurear a pebide, e tem que se distrair com qualquer coisa…

-- Pôarra, pá! Desembucha de uma bez.

"Adriano Manco" decidiu-se:

-- É por causa dos teus putos, pá.

"Nelo Preto" apagou a pirisca no cinzeiro:

-- …dos meus putos? O que foi que os ganapos fizeram desta bez, que lhes arrebento as trombas?

-- Não fizeram nada, pá. Pelo menos, que eu saiba. Mas tu manja uma coisa: tu tens quatro ganapos, não é verdade?

-- Tenho. E ó depois?

-- Desses quatro ganapos, três são morenos, mas um é louro. Ora, há qualquer coisa que não bate certo, estás a gonar o filme?

"Nelo Preto" suspendeu o copo de négos que ia levar à boca, o bastelo a tremer como o caraças:

-- É boa, pá! Nunca tinha pensado nessa merda. Três ganapos morenos e um louro… Ainda bem que me falaste no assunto, que a chantra da Clementina bai ter que pôr a boca no trombone, se não quiser começar logo a afiambrar.

"Adriano Manco" ainda tentou deter o amigo:

-- Ó pá, tem calma, num ligues a bocas foleiras. Num
bás arranjar estrilho com a tua agá. Eu disse-te isto porque sou teu amigo, num foi para arranjar nenhum caldinho.

-- Num é caldinho nenhum. A gaja é que tem de dar à tramela, e bem dada, se num quiser levar um arraial de facho.

Emborcou, de um trago, o resto do vinho, escorropichando o copo. Arrotou ruidosamente e alquinou. Directo a casa.

Fazia uma brasa do carago, e "Nelo Preto" ia tão furioso que nem olhou antes de atravessar a rua. As grevas tremiam-lhe de fúria, e pouco lhe faltou para ser atropelado por um arranco cujo condutor teve de travar a fundo. Embebido nos seus negros pensamentos, "Nelo Preto" nem se apercebeu do gaiolo nem ouviu o condutor:

-- Oube lá, ó murcoum, pareces um pasma! Baza daí, dá de frosques, carago, põe-te na alheta, antes que te passe a ferro.

O presumível cornudo prosseguiu o seu caminho, ruminando palavrões. Sentia-se a jogar no Ramaldense, e impõe-se, já agora, explicar muito bem explicadinho o que significa a expressão jogar no Ramaldense, já que a dilucidação não cabe numa chã nota de rodapé.

Noutros tempos, a freguesia de Ramalde – como muitas outras freguesias – era um arrabalde do Porto, uma zona rural. Nessa zona havia uma raça de bois com cornos bastante compridos a apontados para o exterior. Dizia-se, então, e ainda se vai dizendo, que um fabiano enganado pela agá, tinha-os de Ramalde, ou jogava no Ramaldense. Quem se lembra da canção "Os Provincianos", considerada uma das "Melodias de Sempre", há recordar-se da estrofe "Por isso como em Paranhos/ há paus tamanhos/ que é de espantar/ Na baixa ou no arrabalde/ são de Ramalde/ os paus no ar".

Terminada esta humilde demonstração de profunda erudição, vamos prosseguir com a história.

"Nelo Preto" seguiu rua fora, magicando na melhor maneira de entrar com a patroa. Ou entrava de soleno, tentando tirar nabos da púcara, ou entrava de chancas, apanhando a agá desprevenida. Depois vê-se, decidiu.

D. Clementina, se não era uma zobaida também não se podia considerar um pau de virar tripas. Pelo contrário. Amandava umas gâmbias bem lançadas terminando, na parte superior, numa regueifa bem torneada. As prateleiras apresentavam-se firmes como rochas, e isto não obstante o ter dado de mamar a quatro gandulos. Como se não bastasse, os dois mais novos eram gémeos. O cabelo claro estava puxado em rabo-de-cavalo, mas deixava cair umas repas por sobre os lindos galizos azuis. Ou seja, era um traço. Mas tinha um feitio um bocado complicado, principalmente nos dias em que estava com o chico, isto é, quando o Benfica estava a jogar em casa. Nessas alturas fervia em pouca água, e quem a irritasse estava feito ao bife, que D. Clementina tinha um palanfrório capaz de fazer corar uma peixeira. Mas, neste caso, nem era o caso, e refiro-me ao jogo do Benfica.

D. Clementina passava a ferro umas galdinas de "Nelo Preto" quando este entrou. Entrou e não lhe deu o chocho do costume, o que fez D. Clementina pôr-se a fangues.

-- Olha lá, ó "Tina": tu num andas a mijar fora do penico nem nada?

D. Clementina sentiu-se como se lhe fosse a dar uma sulipampa, assim como uma espécie de badagaio, mas aguentou-se à bronca. No fim de contas ela tinha, a seu favor, a firme convicção de que a cabeça que está em cima dos ombros não é a que os homens usam para pensar, e decidiu passar ao ataque, que sempre é a melhor defesa: amandou os bastelos à cinta e perguntou:

-- Oube lá, num gosto de arcas encouradas, óbiste? Diz lá o que tens a dizer directamente na minha fronha, antes qu'a mostarda me chegue ó nariz.

"Nelo Preto" axandrou-se um pouco. D. Clementina parecia que não partia um prato, mas quando estava com os azeites era o desterro da louça.

-- Ó Tininha, aguenta lá os cabalos… Eu é que num gosto qu'andem a amandar bocas foleiras…

-- Pra já: quem amandou bocas foleiras, e que bocas foram essas?

-- Ó Tininha, deixa lá… Se calhar num bale a pena..

A boz, perdão, a voz de D. Clementina subiu uns decibéis:

-- Num bale a pena, o carago! Bais desembuchar e é já.

-- Olha, que se quilhe… Foi o Adriano… parece que o maralhal anda a querer dizer que o Nelinho num é meu filho… porque ele é loirinho e os outros são morenos…

Mas D. Clementina nem o deixou terminar:

-- Mas tu queres cunsumir-me a ialma? – e eu interrompo D. Clementina para lhe prestar a minha humilde mas sincera homenagem, porque a virtuosa senhora demonstrou, inequivocamente, o seu tripeirismo. Tripeiro/a que se preze nunca diz a
alma, a
água, a árvore; tripeiro que se orgulhe de o ser diz, claramente, a ialma, a iágua, a iárvore. Finda a homenagem, curta mas valiosa, retomemos o diálogo:

-- Mas tu queres cunsumir-me a ialma? Esse grunho
debia mas é olhar prá
garina dele. Quando o porco limposo
estaba
dentro, essa choca de merda chegou a fazer uma geraldina com dois guardas e um chefe, só para ter arrego e num ser rebistada. Era assim que ela passaba a heroa lá pra dentro. E tu dás oubidos a esse paneleiro? Eu só queria que biesse um arranco pra cima desse moina, e que o badalhoco do carago desse o peido mestre.

-- Ó Tininha, mas olha que num foi ele…

-- Atão, quem foi?

-- Num sei, o Adriano só me abisou

D. Clementina interrompeu o manhoso mais uma vez, mas abrindo ainda mais as goelas, como se quisesse que toda a gente ouvisse:

-- Atão ficas a saber, já que também és um manguela que emprenha pelos oubidos: o Nelinho é teu filho, oubiste? Tão certo como a minha mãezinha estar no céu, ao lado de Nosso Senhor. E se tu num fosses tão murcoum, qu'até pareces um mouro, tinhas bisto qu'o Nelinho é a tua tromba chapada. Tem a guedelha como tu, tem os galizos como tu, até tem a gaita como tu. Por isso deixa-te de merdas, dá-me de frosques depressinha, e num boltes a lebantar descunfianças, qu'aí temos o caldo entornado.

"Nelo Preto" ainda tentou:

-- Mas ó Tininha…

-- ANDOR, BIOLETA! Desanda, carago. Dá de frosques. Num tavas a jogar a sueca? Atão bai lá pró barailho, tá beinhe?

"Nelo Preto" achou melhor sair, antes que a conversa azedasse. Porra, que a Agá tinha cá uma adrenalina…! Consultou o parlo. Ainda dava tempo para beber mais um neguinhos. Com sorte, ainda podia encontrar parceiros para uma suecada. Encaminhou-se para a "Tasca do Ti Belmiro" e suspirou de alívio. Afinal, não era galhudo, e isso é que era importante.

O Nelinho era seu filho.

D. Clementina, por sua vez, tranquilizou-se. Sentia-se satisfeita com a sua consciência. Não mentira ao seu manhoso. Sabia perfeitamente quem era filho de quem, e o Nelinho era filho de "Nelo Preto".


 


 


 


 


 


 


 

2010-12-14

"ENQUANTO AS ARMAS FALAVAM"

Faça clique sobre a imagem, para ampliar.
Trata-se do meu mais recente livro, sugestão para prenda de Natal.

2010-12-06

AS "PONTES" E A PROPAGANDA

Vergando, vergonhosamente, a espinha à actual governação, alguma comunicação social faz todos os possíveis por lançar o odioso para cima da Função Pública. É conveniente, aliás, vergar a espinha ao Governo, não vá este começar a recusar a publicidade - dele e das empresas dele dependentes ou a ele ligadas. A gente sabe como funciona a Máfia... Por isso, tudo o que sirva para denegrir a função pública, ou dê jeito para revoltar a população por causa dos "privilégios" dos funcionários públicos, é alegremente publicitado. Se possível, com destaque, não vá o "povo trabalhador" não reparar.
Hoje, tratamos de pontes. Como se sabe, as pontes são aquelas "baldas" que os governos concedem aos malandros dos funcionários públicos, isto é, aqueles dias que se situam entre um feriado e um dia normal de descanso. Por exemplo, um feriado a uma quinta-feira ou a uma terça-feira dá "direito" a uma "balda", respectivamente, à sexta-feira ou à segunda-feira. Aliás, quando se fala em pontes a associação com funcionalismo público é inevitável.
Como não podia deixar de ser, o Jornal de Notícias, fiel à "voz do dono" fala em cinco pontes, como se de um dado adquirido se tratasse. Nas televisões, fazem-se contas aos milhares de euros que as pontes custam ao país. Em crise, como todos sabemos. Causada pelos funcionários públicos, permanentes malandros, como toda a gente sabe. Aliás, basta ler os comentários para se fazer uma ideia.
O que a comunicação social se esquece, convenientemente, de referir, é que essas pontes são, actualmente, gozadas à custa das férias dos funcionários. Se um funcionário tem direito, por exemplo, a 22 dias de férias, pode gozar esses dias quando muito bem entender. É um direito, e não um privilégio. Se faz uma ponte, fica com 21 dias de férias. E depois? Onde é que está o prejuízo para o Estado? Ou será que se quer reduzir as férias aos funcionários públicos, depois de lhes terem reduzido os miseráveis ordenados (não estou a referir-me ao pessoal dirigente, como é óbvio, nem aos gestores públicos)?
Eu só acho que um pouco de vergonha não fica mal a ninguém. Nem à comunicação social.

2010-12-02

A IGREJA, O PRESERVATIVO E A MINISTRA





Ontem foi notícia, embora algo discreta, o facto de a ministra da saúde pretender que a Igreja esclareça a sua posição acerca do uso do preservativo. Confesso que não sei muito bem de que planeta a ministra veio, ou em que século julga que está.
Vamos por partes.
Desde já, reconheço à mui católica cidadã Ana Jorge o sacrossanto direito de se preocupar com a posição da Igreja perante tão magno problema. Toda a gente sabe, principalmente os praticantes, de que modo uma dúvida pode prejudicar o desempenho sexual; e não me repugna admitir o negativo desempenho da referida cidadã, perante o dilema "condom or not condom, that is the question". Na hora da verdade, pode ser irremediavelmente frustrante. Mas já me preocupa a preocupação da ministra de um país teoricamente laico. Preocupa-me mas não me espanta, depois de saber que a referida ministra quer transformar os padres em "testemunhas de Jeová", a espalhar a Palavra de porta em porta.
A Igreja tem determinada posição acerca do uso do preservativo. Muito bem. É um direito que lhe assiste, como a qualquer cidadão ou entidade. E a pergunta é: e o que tem o Ministério da Saúde (MS) e ver com isso? Ao MS compete, apenas, e dentro das suas atribuições, aconselhar o uso do preservativo, para evitar a propagação das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). Ao cidadão compete decidir se o usa ou não, independentemente das suas convicções religiosas. Tudo depende do bom senso, e não da religião. No entanto, parece-me legítimo que o cidadão católico decida seguir as indicações da Igreja. Por isso, só o cidadão católico interessado em seguir tais indicações deve pedir esclarecimentos. A ministra está a exorbitar e, nitidamente, a pôr-se em bicos de pés - provavelmente com vista a uma futura canonização.
O cidadão católico, pode, eventualmente, sentir-se obrigado a seguir as indicações da Igreja; mas isso continua a ser uma decisão pessoal. Porque na verdade, ninguém é, realmente, obrigado a usar preservativo. Do mesmo modo que ninguém é obrigado a casar com alguém do mesmo sexo. Se, para o casamento homossexual, ninguém pediu esclarecimentos à Igreja, por que se há-se pedir para o preservativo?