2012-07-22

O novo "milagre" da multiplicação

Enquanto o café arrefecia na chávena, o meu amigo Adalbataberto vociferava, batendo com o indicador no já datado "Jornal de Notícias" (JN):
- Mas tu já viste isto? Já leste bem a notícia?
A notícia, publicada ao fundo da página 20 do JN do dia 19 de Julho, não me pareceu assim muito transcendente. Passei-lhe os olhos:
- Pronto. "Artesãos trabalham a favor de bombeiros".E depois?
- "Depois?!" perguntou o Adalbataberto, mexendo furiosamente o café, na tentativa, já inglória, de dissolver o açúcar -. Isso quer dizer que não leste bem. Mas eu elucido-te - acrescentou com uma ponta de ironia. E prosseguiu:
- Para já, começa por dizer que "Os Bombeiros Voluntários do Porto e de Coimbrões" vão poder juntar 20.800 euros por ano com as receitas dos "Sábados Solidários". Ora, como no Porto há duas corporações de bombeiros voluntários, isso quer dizer que os "Portuenses" não recebem a ponta de um corno.
Ignorando a grosseira observação, argumentei:
- Calma. A notícia não diz qual corporação vai abichar essa guita toda. Pode ser que sejam as duas...
Adalbataberto nem me deu tempo:
- As duas?!. Tu estás bom, ou deixaste de saber ler? Queres ver que te licenciaste como o outro? Bombeiros Voluntários do Porto não está escrita com minúsculas. É com maiúsculas, pá! Sabes o que isso quer dizer? Se estivesse escrito com minúsculas significaria que eram todos os bombeiros voluntários; com maiúsculas significa que são aqueles, e mais nenhuns. É nome próprio, percebeste?
Não discuti, até porque o Adalbataberto percebe de português como poucos. mas o meu amigo não me dava tréguas:
- E leste quem é que vai proporcionar essa receita?
- Li, claro. É a Associação de Bares da Zona Histórica do Porto (ABZHP) - respondi, tendo o cuidado de  acentuar as maiúsculas, não fosse o Adalbataberto querer dar-me outra lição de português.
- Pois. E o que é que a ABZHP tem a ver com o artesanato?
- Boa pergunta! Não sei - confessei.
- Pois não - Adalbataberto estava eufórico. - Não sabes tu, nem sabe ninguém.
- Calma aí - decidi passar ao ataque. - Sabes lá se não vão vender bebidas artesanais? Tipo vinho a martelo, champanhe do Cartaxo, rum das Berlengas... De qualquer modo, dado que é uma iniciativa de uma associação, certamente foi votada em assembleia geral...
- Não brinques, pá! Qual assembleia geral? Tentei falar com o presidente, e não consegui...
- Qual presidente?  - perguntei, distraído a observar uma boazona que descruzava, para voltar a cruzar, as pernas pela cagagésima vez. - O Cavaco?
Adalbataberto enfureceu-se. Não gosta de distrações quando fala:
- Qual Cavaco, porra! O presidente da assembleia geral, pá! Não consegui. Nem com ele, nem com ninguém do conselho fiscal, nem com o tesoureiro, já que isto envolve dinheiro... Dá a impressão de que essa gente não existe. Mas não é tudo.
Recostei-me na cadeira e observei com atenção o meu amigo, dado que a boazona tinha ido embora.
- Que mais temos?
- Sabes fazer contas?
- Olha, pá, nem por isso. A matemática nunca foi o meu forte...
- Não faz mal, eu ajudo-te. Lê aqui - apontou-me onde eu devia ler, com o dedo indicador. Mas, sem esperar que eu fizesse as contas, missão algo penosa para mim, esclareceu-me:
- A ABZHP promete fazer "feiras solidárias" todos os primeiros e últimos sábados de cada vez. Cada feira terá, "pelo menos", 50 artesãos. Cada artesão pagará uma "quota solidária" de dez euros. E será essa receita que garantirá os 20.800 euros a cada corporação. Agora, faz as contas comigo: duas semanas por mês, dá 24 semanas por ano. A multiplicar por cinquenta artesãos, dá 1200 artesãos. Se cada artesão pagar uma "quota solidária" de 10 euros, vai dar 12.000 euros ao fim do ano. A dividir por duas corporações de bombeiros, dá seis mil euros a cada uma. Então, onde estão os 20.800 euros? Ou teremos a versão moderna do "milagre" da multiplicação, só que em vez de pães e peixes são euros? Olha, o Governo podia aproveitar, que a ABZHP era capaz de dar cabo da crise.
Meio atordoado com a rapidez das contas que, na verdade, não consegui acompanhar, ainda ouvi Adalbataberto dizer:
- Agora, repara: "os bombeiros ficarão com 80% das receitas; os restantes 20% destinam-se aos gastos da organização". Gastos da organização?? Quais gastos? Despesas com e-mail? Sinceramente, conheço os termos "bolso", "algibeira", mas é a primeira vez que vejo alguém chamar-lhe "gastos de organização"...
Adalbataberto parecia mais calmo. Chamei o empregado, paguei a despesa, e preparei-me para sair. Mas ainda ouvi o meu amigo desabafar:
- Estes políticos sempre me saíram uns trafulhas..! Mas como é que um jornal respeitável, como o JN, embarca numa história destas? Não sabem fazer contas? Ou já andam nos fretes?
Antes de sair, ainda me atrevi a perguntar:
- Quem te disse que foi um político...?
- Ora, pá! Só um político é que promete,sabendo que não vai cumprir. De caras.
Saí. Não cheguei a perceber a que político Adalbataberto se referia.


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