2011-02-05

A CÁRIE

O senhor Salustiano era um homem de fé. Lembrou-se de que S. Lamberto era o padroei­ro dos dentistas e, por analogia, entendeu ele, dos sofredores dentais. Por isso, saiu do consul­tório e atravessou a povoação em direcção à igreja onde, naquelas circunstâncias de tempo, já pontificava o nosso conhecido padre José dos Santos Passos, segundo o qual os santos são intermediários entre os homens e Deus. Entrou directo na sacristia. Tinha pressa, porque o remédio que o den­tista tinha colocado no dorido dente corria o risco de ficar fora de prazo em curto prazo.

O padre José dos Santos Passos lia o breviário, e mal se sobressaltou quando se deu a entrada, algo bu­liçosa, do senhor Salustiano:

- Boa tarde, caro paroquiano. É sempre um prazer vê-lo na Casa de Deus. Aliás, a si e a to­dos os paroquianos.

- Boa tarde, padre.

Durante o trajecto, o senhor Salustiano delineara uma espécie de estratégia. Santos são san­tos, têm o poder de interceder junto de Deus, mas não é menos verdade que o mortal não pode estar à espera das dádivas divinas sem que haja uma contrapartida. Não é por mero acaso que muitas pessoas palmilham os caminhos até aos santuários, onde depositam os ex-votos – normalmente sob a forma de dinheiro ou objectos valiosos. Por isso, o senhor Salustiano sabia perfeitamente que não podia esperar um milagre e, depois de concedido, ir todo contente para casa como se nada tivesse acontecido. Era o que faltava!

Estava disposto, assim o tinha decidido, a mandar pintar a igreja – aliás a precisar de pin­tura urgente. Bastava, apenas, que aquela cárie dentária desaparecesse por milagre.

- Diga-me, senhor padre: esta igreja tem alguma imagem de S. Lamberto?

José dos Santos Passos sentiu-se algo interdito. São Lamberto? Por que carga de água? Por acaso até nem era um santo com saída, o que estava a dar mais era os chamados “Santos Populares” ou, em alternativa, o S. Gregório, muito solicitado aos fins-de-semana, fora disso era mais santas, tipo Santa Filomena, Santa Maria Madalena... Agora São Lamberto???

- Por acaso não... temos muitas imagens, São Bento da Porta Aberta, São Teotónio, por exemplo...Mas porquê?

- Bom, é que São Lamberto é o padroeiro dos dentistas; ora, sendo padroeiro dos dentis­tas, certamente que não vai deixar de lado os que sofrem de cárie dentária...

José dos Santos Passos interrompeu-o:

- Não tem lógica, a sua dedução, meu filho. Se São Lamberto é padroeiro dos dentis­tas, nunca pode ser, ao mesmo tempo, padroeiro dos sofredores, não é verdade? São interes­ses antagónicos. Se não houver quem sofra dos dentes, não são precisos dentistas para nada. Se São Lamberto é padroeiro dos dentistas, protege-os, nunca poderia proteger os que têm problemas dentários, pois se assim fosse estaria, naturalmente, a prejudicar os dentis­tas. E os santos podem ter os defeitos que quisermos, mas fazem da honestidade o seu pon­to de honra.

Naturalmente empolgado pelo seu discurso, José dos Santos Passos nem se apercebeu da barbarida­de que acabara de lhe sair pela boca fora. Os santos têm defeitos? E são santos? Valha-me Deus!

Adiante.

O senhor Salustiano, no entanto, não se dava por vencido:

- Então diga-me, padre, a que santo terei de recorrer para curar uma cárie dentária?

José dos Santos Passos estupeficou-se:

- ...Uma cárie dentária???

- Sim, padre. Uma cárie dentária. Sabe o que é isso, certamente.

- Claro que sei, se bem que não por experiência própria, graças a Deus. Mas nunca ouvi fa­lar nesse tipo de cura... sinceramente... Quer dizer: pôr paralíticos a andar, pôr cegos a ver, ainda vá que não vá; agora curar cáries dentárias... não me parece. Aliás, repare: só são considerados milagres os factos que a medicina não consegue explicar.

Fez uma muito curta pausa:

- Nunca nenhum santo era capaz de fazer concorrência à medicina convencional, veja lá se compreende! Se a medicina não sabe como curar, aí sim, entram os milagres em acção. Agora, havendo remédio terreno, para quê ir buscá-lo ao Céu?

O senhor Salustiano ainda ficou uns momentos a olhar, hesitante, para o padre. Depois, acabou por se despedir com duas decisões irrevogavelmente tomadas: a primeira, nunca mais pôr os pés na igreja e, pura e simplesmente, tornar-se ateu; a segunda, arrancar o maldito dente. Podia, até, arrancar os dentes todos. Tudo, menos a broca.

Hoje, o senhor Salustiano é proprietário de uma invejável placa dentária com a qual, nos tempos livres e quando está bem disposto, costuma tocar castanholas, batendo com a arcada in­ferior na superior.

Ou vice-versa...


In: "Enquanto As Armas Falavam", de José Carlos Moreira.

Editora "Lugar da Palavra".

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