2009-05-13

REMINISCÊNCIAS DA INFÂNCIA

Coisas há que, tendo-se passado na nossa juventude ou infância, ficam de tal modo embutidas da nossa mente que é difícil separarmo-nos delas. Por exemplo, a religião. Foi-me incutida logo à nascença, na pia de água-benta, e teve continuidade pela vida fora. Hoje, deixei de acreditar em Deus, consegui livrar-me dessa coisa da religião, mas só Deus sabe com que custo.
Quando eu era criança, havia um homem que, quase todos os dias, passava na "minha rua", na rua onde todos nós brincávamos. Esse homem era alvo da nossa curiosidade e, vá lá, perseguição, por apresentar uma característica que despertava a nossa infantil e legítima curiosidade: o homem falava sozinho. E era ver aquelas crianças, entre as quais eu me encontrava, a perseguir o "maluquinho, coitadinho", como os mais velhos se lhe referiam, tentando adivinhar para quem ou com quem o homenzinho falava. E a perseguição continuava até que, atingidos os limites territoriais estabelecidos pelo nosso conhecimento do terreno, regressávamos à brincadeira de rua, mais perto das habitações respectivas.
Claro que o tempo foi passando, eu fui crescendo e, naturalmente esse episódio, muitas vezes repetido, ficou arquivado na pasta dos assuntos esquecidos. Pelo menos, assim o pensava. Mas ontem, um acontecimento fez-me desarquivar a lembrança: cruzou-se comigo, passeava eu pela Foz, um homem a falar sozinho. E todas as minhas lembranças da infância, que eu julgava mortas, ressuscitaram, tal como Jesus - só que estas, as lembranças, demoraram mais tempo. E uma vontade irreprimível me assolou repentinamente: apeteceu-me, tal como fazia há muitos anos, ir atrás do homem, tentar descobrir o que dizia e com quem falava, tal como o "maluquinho, coitadinho", da minha infância. Mas contive-me. Hoje, ouvir uma conversa, mesmo que na rua, pode ser considerado invasão de reserva da vida privada. Além disso, o homem não ia a falar sozinho: falava para um telemóvel, através do "blue tooth". Mas que parecia, parecia.
E o homem matou a minha infância...

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