2009-06-18

DEMOLIDOR…

Nunca vi, ou li, na minha vida, uma crítica tão demolidora como a que abaixo transcrevo, publicada no "Expresso" de 13 de Junho de 2009 pela pena de Jorge Calado.

A ópera, meus amigos, é um espectáculo que merece o máximo respeito. Sim, bem sei que todos os espectáculos, desde que apresentados com honestidade, devem merecer respeito; mas há casos e casos e, no caso presente, o autor da ópera nem está cá para se defender. O que torna a coisa mais grave. Se eu tiver a lata de ir a um palco cantar uma música do Quim Barreiros e aquilo sair mal, é certo e sabido que o Quim é capaz de vir a terreiro chamar-me nomes; no caso em apreço, Mozart limita-se a dar umas voltas no caixão. Daí o respeito que nos devem merecer todas as obras cujos autores já não estão cá para as defender.

Eu não posso, nem devo, acrescentar seja o que for ao que já foi escrito. Primeiro, porque não vi o espectáculo; depois, porque já tudo foi dito. E não foi pouco. Mas posso, e devo, realçar um pedaço delicioso do texto. E que gozo me deu realçá-lo! Só tenho receio de que o ministro da cultura não leia o "Expresso". Mas devia lê-lo. Pelo menos, este "Expresso" e esta crítica. Talvez sentisse um pouco de vergonha pela asneira que fez.

E daí, talvez não...


SÃO CARLOS FECHA A TEMPORADA LÍRICA COM OUTRA PRODUÇÃO DESASTRADA

TEXTO DE JORGE CALADO

É PRECISO TOPETE para

entregar a encenação de "Don Giovanni" (1787) a um principiante. (Maria Emília Correia tem obra respeitável no teatro, mas esta era apenas a sua terceira incursão na ópera.) Ainda por cima, o elenco deixava muito a desejar, oscilando entre o execrável e o sofrível escolar, e faltou verve mozartiana à direcção orquestral. A ópera é segundo os autores, um dramma giocoso, mas os sorrisos (amarelos) vinham da leitura dos sobretítulos, não do palco. E não se sentiu o mais pequeno arrepio nesta que é a mais sublime das óperas — provavelmente a maior de todas jamais compostas. Em suma, um falhanço redondo, sem ponta por onde se lhe pegue

O que é frustrante e desanimador é que o director artístico, Christoph Damn não aprende com os seus erros. Joha Stert era um reles Kapellmeister da Ópera de Colónia que no ano passado tinha provado a sua incompetência mozartiana em "La Clemenza di Tito". Pois bem, regressou para Mozart O trio de cantores residentes (?), verdes e banais, tem origem em Colónia; são atirados, a torto c a direito, para papéis principais. Há, por cá, bastante melhor, mas Herr Damman não se deu ao trabalho de os ouvir. Apesar da magnifica catedral, Colónia não é o centro da Europa e muito menos do mundo operático, mas parece ser o umbigo de Dammann. Finalmente, parece que temos de gramar sempre mesmos cantores convidados: Kevin Short fez, em Janeiro, um Mefistófeles aceitável; cinco meses passados, ai esta ele outra vez, mas, mal dirigido, nem mostrou ser bom actor. O São Carlos nunca foi, não é , nem pode ser (por falta de dinheiro) um teatro de repertório. Com apenas seis óperas por ano (menos do que qualquer teatro de província espanhol), o público português tern direito a ouvir mais e melhores cantores. Diga-se, de passagem, que os bilhetes são caríssimos em relação ao equivalente internacional (e não me refiro apenas ao binómio qualidade/preço). Maria Emília Correia não tern nada a dizer em relação ao "Don Giovanni" — e mostra isso no texto paupérrimo que escreveu para o programa.

A ópera é apresentada num cenário único, baratucho, género musical duma Broadway de terceira (e custa-me muito ver António Lagarto, responsável também pelos figurinos, a colaborar neste desastre), que tanto é Espanha (Hotel Alfonso XIII), como tern graffiti em francês, como é praia (aproveitando, talvez, os feriados de Junho). Quando as ideias faltara, abusa-se dos figurantes extra, como é o caso. Uns sujeitos empertigados marcham em fila e deitam-se no chão — e cã temos um cemitério todo modernaço. O protagonista parece ter uma fixação com sapatos, e o catálogo é uma espécie de baú da Imelda Marcos, de onde saem sapatos de todas as cores e para todos os gostos. Só não percebi porque é que o protagonista, no 'Fin ch'han dal vino', não bebeu champanhe por um sapato. Já agora, levava-se o disparate ate ao fim.

0 pior estava reservado para o final. Já se sabia que quem ver mamas ao vivo e sexo anal simulado deve ir a correr comprar um bilhete para o São Carlos. E para isso que há as Matines de Família. O que não esperava era assistir ao crime musical de interferência e amputação do genial final criado por Mozart e DaPonte (sem aviso no programa). Mas o São Carlos tomou o gosto as mutilações das operas que apresenta e a tutela aguenta. A ópera, tal como foi concebida, não se quadrava com a concepção (?) de Correia. Toca de fechar a cortina após a morte do Don (com o publico pateta a julgar que o espectáculo tinha acabado), elimina-se o delicioso final que mostra como a vida continua e passa-se directamente ao concertante, com os personagens embrulhados nuns lençóis, quais fantasmas, num céu cheio de neve carbónica. A reacção não se fez esperar uns buuus monumentais, que é o que tudo isto merece. Ainda se a parte musical se safasse... Mas a direcção de Stert é chata e arrastada, os desencontros são frequentes e a desafinação é recorrente (aquele trio ""das máscaras, meu Deus!). Apresentado pelo Círculo Portuense de Opera, Nicola Ulivieri fez um excelente Don Giovanni no Porto, há dez anos (uma informação sonegada nesta apresentação). Aliás, com Vaz de Carvalho no Leporello e Denia Mazzola na Donna Elvira, essa produção mete esta num chinelo. (Curioso como o CPO deixou de ser subsidiado; dez mil euros no CPO valiam bem mais que um milhão no actual São Carlos). Desta vez, para se impor no meio da desgraça geral, Ulivieri berrava (que tem voz para isso), mas não exsudava uma pérola de erotismo. Katharina von Billow (Donna Elvira) é uma das piores cantoras que, nos últimos tempos (reconhecidamente maus), pisou o palco do São Carlos. Sem voz, uns guinchos a fazer de agudos, sem estilo, devia ter sido devolvida a procedência após o primeiro ensaio. Musa Nkuna (Don Ottavio) tem um timbre bonito e Carla Caramujo (Donna Anna) é dos raros interpretes a aproximar-se do estilo, mas não chega para papéis de tal envergadura e responsabilidade. O terço inferior da voz de Andreas Hörl (Commendatore) e inaudível — precisamente o terço mais exposto nesta ópera. Resta o par de camponeses, Masetto e Zerlina. O primeiro, Leandro Fischetti, não tem voz nem talento que se recomende; a segunda, uma cantora medíocre, acabou por brilhar. Fica tudo dito.





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